Nem senador, nem capitão, nem Velho, muito menos Cavaleiro da Esperança. No material que Maria Prestes, viúva do político e revolucionário Luiz Carlos Prestes (1898-1990), doou recentemente ao Arquivo Nacional, a assinatura que mais aparece é “Pai”. Assim Prestes, o secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro, se identificava nas cartas que escrevia aos filhos. Das mais de 1.000 páginas de documentos doados, distribuídos em 15 pastas, cerca de 80% são de correspondências com a família nas décadas de 1970 e 1980.
Cartas particulares de Prestes já foram noticiadas anteriormente, quando foi lançada a coleção Anos tormentosos: correspondências da prisão (1936-1945), mas tratavam de outro momento histórico: o tempo em que esteve preso durante o Estado Novo. A divulgação das comunicações entre sua mãe, as irmãs e, principalmente, sua primeira mulher, a revolucionária Olga Benário – que estava num campo de concentração na Alemanha nazista – mostraram o lado mais carinhoso de Prestes. Mas esta nova leva de documentos que acaba de integrar o acervo do Arquivo Nacional apresenta outro período de sua vida. Os textos, em sua maioria datilografados na máquina Olivetti ,mostram um homem preocupado em manter contato com cada um dos nove filhos que teve com Maria: Pedro, Paulo – do primeiro casamento de Maria –, Antônio João, Rosa, Ermelinda, Mariana, Zóia, Luiz Carlos e Yuri.
A necessidade de se comunicar com os filhos por carta era resultado da tumultuada vida do político. Nos anos 1970, quando viveu o segundo exílio, ele morou na União Soviética com a família. Na mesma década, Pedro se mudou para Cuba aos 25, e Rosa, aos 22, para Moçambique. Anistiado em 1979, voltou para o Brasil, mas sem os filhos, que precisavam terminar os estudos em Moscou ou, já adultos, estavam morando em outros países, com exceção de Paulo, que retornou ao Brasil em maio de 1971.
Prestes demorou muitos anos para poder ser chamado de pai. Sua filha Anita Leocádia – fruto do casamento com Olga Benário – só o conheceu aos nove anos porque o revolucionário estava encarcerado na prisão do Estado Novo. Já os filhos que teve com Maria nasceram quase todos no período em que Prestes esteve na clandestinidade e achavam que o tal “Velho”, como ele era chamado por Maria e também por companheiros, era seu tio. Tudo isso em nome da segurança da família. Enquanto o PCB ficou na clandestinidade, nos anos 1950, ninguém podia saber o paradeiro de Prestes: a polícia poderia prendê-lo a qualquer momento. “E as crianças poderiam comentar na escola, com colegas... Por isso, era preciso guardar segredo”, explica Maria. Nos anos 1960, os mais velhos – Pedro, Paulo, João, Rosa e Ermelinda – já sabiam que Prestes era seu pai. “Mas os mais novos só foram saber que tinham pai quando fomos para Moscou em 1971, no exílio”, conta. A notícia foi boa, mas também estranha. Mariana, nascida em 1960, chegou a dar um depoimento sobre o assunto no documentário O Velho, de Toni Venturi: “Pra mim foi uma coisa louca. Como assim, eu tenho pai? (...) Eu fiquei muito frustrada, ao mesmo tempo, de saber que eu tinha [pai] e não pude curtir isso [na infância]”.
Mas depois parece que Prestes conseguiu compensar esta “ausência de fachada”. “Em Moscou ninguém precisava mentir, esconder, camuflar seus sentimentos, e ele podia abertamente chamar todos de filhos”, diz Ermelinda. De volta ao Rio de Janeiro, ele escrevia para filhos e netos, e recebia mimos das crianças em forma de desenhos, como casas coloridas, flores, borboletas, a foice sobre o martelo e o Pateta. Sim, o símbolo comunista – quem diria – pode estar na mesma página que o personagem da Disney, uma das maiores referências do imperialismo dos Estados Unidos. A prova está em uma carta de Andreia, neta de Prestes, que os desenhou em uma mesma página enviada aos avós em 17 de julho de 1985 diretamente de Maputo, em Moçambique.
Já seu irmão Eduardo não era muito de desenhar, mas caprichava na lista de pedidos de presentes. Pedidos que, aliás, não combinavam muito com os ideais comunistas. Em carta do dia 21 de junho de 1986, ele escreveu: “quero revistinha da Mônica, do Tio Patinhas, Chico Bento, Super-Homem, Homem-Aranha, Huguinho, Zezinho e Luizinho”. E o avô enviava os presentes? “Não. Quem mandava era eu”, conta Maria, que volta e meia despachava não só os gibis: “Eu mandava balas, doces, feijão, café... Em Moçambique não tinha nada. Para eles, era uma festa receber isso”. Quanto à reação do marido, ela diz que ele era muito tranquilo: “não dizia nada, mas sempre que podia oferecia um ou outro livro que considerava mais importante, como Monteiro Lobato. É que a criança expressa aquilo que ela está vivendo. e ela vive no capitalismo”, defende a avó.
A mesma carta de Eduardo dá sinais do difícil momento por que passava Moçambique, que vivia uma guerra civil: “A gente não pode ir à praia porque estouraram três bombas, mas por enquanto está tudo bem.” Hoje a frase arranca muitas gargalhadas da avó e do neto. Afinal, como poderia estar tudo bem se estavam explodindo bombas? Entender a lógica de uma família que nasceu na clandestinidade não é nada simples... Hoje com 35 anos, Eduardo se lembra do compromisso que tinha de se corresponder com ele. “Às vezes eu levava uma bronca dele porque eu era um dos que menos escreviam”, lembra o neto, que guarda na memória momentos em que o avô o surpreendia, nas férias, jogando em cima dele bolinhas feitas de miolo de pão.
Uma bronca de leve também levou o filho caçula, Yuri, em carta de 10 de maio de 1988. O pai, exigente, dá a entender que Yuri precisa se esmerar na redação: “Meu caro filho, respondo à tua carta última, que muito me alegrou, porque escrita já com melhor letra (legível ao menos) e também num português menos mau que as anteriores.” Pelo visto, ele não perdoava deslizes. Também, pudera. As cartas de Prestes são absolutamente bem escritas, claras, datilografadas, após terem sido devidamente rascunhadas no manuscrito.
A cobrança da correspondência era dirigida a toda a família. Rosa – ou Rosinha, como Prestes costumava escrever – lembra que, durante o ano de 1983, essa correspondência era quase mensal. “Nos outros anos, variava bastante. Temos cartas de 1978, 1979, 1984, 1985 e 1986.” Já Pedro, falecido em 2010, falava com mais frequência com o pai. De agosto a setembro de 1975, há pelo menos três postais que foram enviados do pai para o filho. Em um deles é possível perceber, inclusive, o gosto pelas artes e o bom humor que havia no relacionamento dos dois. No verso de um cartão que exibe a imagem da escultura “Rapto das Sabinas”, de Giambologna, em Florença, Prestes escreveu: “Estive na Bulgária com a Maria e, sem ela, lá pelo norte da Itália, de onde trouxe este cartão em que verás como se raptava antigamente e, ao mesmo tempo, a maestria do escultor. Que beleza!”
Porém, o que mais chama a atenção quando se percorre esse conjunto de correspondências é que Prestes aguardava a chegada de cada uma delas com ansiedade e contradiz uma imagem equivocada de sua personalidade, como já escreveu Dias Gomes: “em nossa deformada visão, [Prestes] aparecia sempre desligado de qualquer relação familiar, dedicado em tempo integral à causa revolucionária”. Havia uma preocupação em manter a família informada não apenas sobre a situação política do Brasil, mas também sobre o que cada filho estava fazendo, formando uma espécie de rede de comunicação. Normalmente, esse era o assunto dos primeiros parágrafos.
O modo como essas cartas foram preservadas é outra pista interessante para compor a história de vida de Luiz Carlos Prestes. Até o envio para o Arquivo Nacional, todas as correspondências estavam guardadas em pastas, devidamente organizadas por Maria Prestes. Ela separou uma pasta para cada filho, e dentro de cada uma, os documentos foram dispostos em ordem cronológica. Tratando-se de mais de 1.000 páginas, o serviço é, no mínimo, trabalhoso. Mas não para Maria. Enquanto ela viveu com Prestes na clandestinidade, na década de 1950, uma de suas tarefas era organizar noticiários para futuras consultas do líder do PCB. “Eu separava recortes de jornais por tema e organizava de forma que ele pudesse localizar facilmente: economia, sindicalismo, política nacional, internacional... Quando ele ia escrever alguma coisa, era só puxar uma pasta pra consultar. Como ele não podia sair de casa, isso o ajudava muito nas pesquisas”.
Na despedida em cada uma das cartas, seguia o afeto paternal – livre da clandestinidade ou de nomes e parentescos falsos – com o envio de beijos e abraços, às vezes acompanhados de um adjetivo carinhoso, como “O abraço afetuoso do Pai”, curiosamente, sempre escrito com P maiúsculo.
O aparelho familiar
Vivi Fernandes de Lima