O artista dos tempos incríveis

Alice Melo

  • “Ruy Guerra é um homem da imagem e da palavra”. Quem diz isso é a historiadora Vavy Pacheco Borges, professora do Departamento de História da Unicamp, que há quatro anos vem pesquisando a vida deste cineasta e, mais recentemente, professor de cinema. Para ela, o Ruy conhecido pela maioria das pessoas é o homem das imagens, dos filmes polêmicos do Cinema Novo – como o popular “Os cafajestes” (1961), no qual as referências a sexo – como o primeiro nu frontal da história do cinema brasileiro – e ao uso de drogas incitaram debates sociais fora do círculo dos cinéfilos. Mas o que pouco se mostra dele é o lado da palavra: o compositor, escritor por natureza, homem quieto, ligado aos estudos e à leitura. Antes da imagem, do filme, há sempre o roteiro, as ideias no papel. A historiadora pretende lançar não apenas uma biografia, mas também um documentário sobre o artista que, segundo ela, “participou dos maiores lances do século XX”.

    Ele nasceu em Moçambique. Lá viveu o colonialismo e revoltou-se contra o racismo na África portuguesa, principalmente por meio de sua arte. “Chegou a Paris para estudar cinema, nas primeiras marolas da Nouvelle Vague”, comenta a pesquisadora, acrescentando com entusiasmo que Guerra se mudou para o Brasil nos “incríveis anos 1960”, vivendo aqui o Cinema Novo, passando pelas censuras na ditadura. Compôs mais de 100 letras para músicas de Edu Lobo, Francis Hime, Chico Buarque, Milton Nascimento, Carlos Lyra, Sérgio Ricardo; envolveu-se em romances famosos com Nara Leão, Leila Diniz e Cláudia Ohana. Mas, apesar do lado cultural pungente, da forte influência na geração dos anos 1960 e 1970, ele é também um homem caseiro. “Como um amigo me disse numa entrevista, ele é um maluco-família, ama os filhos de paixão. Isso me surpreendeu. Ele é bem menos louco do que eu imaginava”, brinca Vavy.

    Hoje amiga dessa figura controversa, a historiadora admite que ele não é, nem quer ser, “uma pessoa fácil”. Ela não deseja representá-lo como um herói, mas mostrar, além de suas realizações no campo da cultura, suas contradições, suas dúvidas e incertezas, e também o papel que o acaso teve na vida nada linear desse homem polêmico, que hoje “se aquietou em sua casa em Laranjeiras”, no Rio de Janeiro, e planeja trabalhar até o último dia de sua vida.

    Vavy fez 150 entrevistas em cinco países, entre eles França, Moçambique e Portugal; reuniu quilos e mais quilos de documentos, fotos e vídeos de Ruy Guerra: “Às vezes eu ficava pensando: como vou traduzir tudo em uma única biografia?”. Por isso surgiu a ideia de lançar duas obras independentes: um livro e um filme. “A intenção é que uma [obra] ilumine o caminho da outra”. Mas a estrada é longa: segundo ela, isso é “um trabalho de historiador, e não de jornalista – o historiador demora, faz com calma”.