O atirador de palavras

Francisco Cláudio Alves Marques

  • Ao ler os primeiros textos sobre Francisco de Assis (1182-1226), foi inevitável o interesse pelas hagiografias, o estudo da trajetória dos que foram considerados santos e dos documentos que tratam deles e de seus cultos. O tema é fascinante, especialmente para quem tem vivência familiar evangélica, da qual os santos não fazem parte.

    No mestrado, estudei o assunto de forma mais sistemática, pois analisei relatos sobre os martírios reunidos por Eusébio de Cesaréia em sua obra História Eclesiástica, escrita no século IV. Não abandonei o tema no doutorado, quando estudei dois santos que viveram na Hispânia, região onde hoje estão Portugal e Espanha: Emiliano, um eremita que teria vivido no século V, e um abade do século XI chamado Domingo. Suas vidas foram escritas pelo clérigo e poeta castelhano Gonzalo de Berceo no século XIII.

    No fim do doutorado, aprofundei as reflexões sobre o fenômeno da santidade. Mas como unir o estudo sobre os santos ibéricos ao do italiano Francisco de Assis? Foi assim que surgiu o projeto “Hagiografia e História: um estudo comparativo da santidade”, que recebe auxílio financeiro da Faperj, do CNPq e da UFRJ. Esta pesquisa, que envolve alunos de graduação, de pós-graduação e professores de outras instituições, estuda, em perspectiva comparada, os textos hagiográficos e a trajetória de homens e mulheres que foram cultuados nas penínsulas ibérica e itálica nos séculos XI, XII e XIII.

    Escolhi este período porque foi nele que o Papado começou a organizar os processos de canonização, causando uma diferenciação entre os considerados santos: os oficialmente aprovados com culto universal, como Francisco de Assis, os que receberam licença papal para serem venerados em dioceses específicas, como a escritora mística Ângela de Foligno, e os que não foram reconhecidos pela Igreja, mas reverenciados pelos fiéis, como Dominguito Del Val, um menino que teria sido raptado e morto por judeus durante as celebrações da Páscoa cristã.

    Quando a pesquisa foi iniciada, verificamos que não havia uma publicação que reunisse informações sobre todos os textos hagiográficos produzidos e sobre as pessoas que foram cultuadas, com ou sem aprovação papal, que nasceram ou atuaram nas penínsulas ibérica e itálica na chamada Idade Média Central. Por isso, o grupo começou a montar bancos de dados com estas informações. Assim, nos bancos de dados só há santos nascidos na Europa Ocidental, ainda que alguns deles sejam oriundos de famílias muçulmanas, como Bernardo de Alcira e suas irmãs Zaida e Zoraida, pois, no período estudado, parte da atual Espanha estava sob domínio islâmico. Alguns deles tiveram grande difusão no Brasil, como Gonçalo de Amarante e Antônio, o santo casamenteiro.

    Como o material pode interessar a muitas pessoas, devotas ou não, decidi que ele deveria ser disponibilizado on-line. Além de permitir a consulta gratuita, a meta é receber contribuições dos leitores para a ampliação dos dados coletados. Já está disponível para consulta, desde 2009, o Banco de Dados das Hagiografias Ibéricas, com informações sobre os documentos do século XI ao XIII, no total de 136 obras (www.ifcs.ufrj.br/~frazao/hh1.pdf). Sem dúvida, este conjunto não retrata toda a produção hagiográfica ibérica do período, mas é uma amostragem significativa. Este ano, será disponibilizado o banco de dados sobre os santos ibéricos.

    Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.