O Brasil das brenhas

Eduardo Vieira Martins

  • Aquarela de 1845 mostra a hospedaria Boa Fama. Na época "sertão" designava a região entre áreas mais povoadas e a floresta desconhecida.Uma caravana atravessa o sertão abrasado pela seca. Um cavaleiro solitário a acompanha de longe, precavendo-se para não ser percebido pelos viajantes. Quando um incêndio criminoso ameaça matar uma bela jovem, que se adiantara à frente do comboio, ele irrompe do meio do mato e a salva do fogo. Com essa cena de heroísmo, José de Alencar (1829-1877) dá início ao seu romance O sertanejo. Publicado em 1875, quando a voga indianista – que havia encantado os leitores nos primeiros decênios do romantismo – encontrava-se em declínio, o livro contribuía de maneira determinante para estabelecer uma nova convenção literária no país: o mito do sertão.

    O filão já havia sido desenvolvido por outros romancistas, como Bernardo Guimarães (1825-1884), autor de O ermitão do Muquém (1869), cuja história se desenrola em Goiás, e o visconde de Taunay (1843-1899), que em 1872 publicou Inocência, ambientado no sertão de Mato Grosso. No século XIX, a palavra “sertão” tinha um sentido diferente do atual, designando não apenas as porções semiáridas do Nordeste, mas qualquer região pouco povoada do interior do país, podendo ser usada para nomear territórios tão diferentes quanto a floresta amazônica e o interior de São Paulo.

    Em O sertanejo, ambientado no Ceará, Alencar concebe o sertão como fronteira de civilização, uma vasta região semidesbravada, situada entre as áreas mais povoadas e a floresta desconhecida. Território conquistado passo a passo, à medida que o gado se embrenha pelo interior, é o espaço das grandes fazendas de criação, do vaqueiro e dos seus costumes rústicos. Isolado e inóspito, é um lugar perigoso, que exige força e coragem dos seus moradores.

    A narrativa se concentra em poucos dias, entre dezembro de 1764 e janeiro do ano seguinte. Na abertura da história, a caravana do capitão-mor Gonçalo Pires Campelo corta o sertão de Quixeramobim em direção a Oiticica, uma rica fazenda de criação de gado fundada pelo pai de Campelo, seu atual proprietário. Lá, afastada das grandes cidades, uma comunidade vive em torno do capitão-mor, representado como uma espécie de senhor feudal. A harmonia existente entre seus habitantes é ameaçada pela chegada do capitão Marcos Fragoso, que deseja pedir a mão de D. Flor, filha de Campelo, em casamento, mas acaba entrando em confronto com o orgulhoso fazendeiro. Resolvido a sequestrar a menina, Fragoso inicia uma verdadeira guerra, e só não alcança seu objetivo porque é derrotado por Arnaldo Louredo, o herói da história.

    O sertão, portanto, se caracteriza como um lugar violento, marcado por lutas constantes. Para o narrador, por se encontrarem isolados e sem proteção, os fazendeiros ricos eram obrigados a exercer o poder que caberia ao governo central, então ausente:“Para segurança da propriedade e também da vida, tinham necessidade de submeter à sua influência essa plebe altanada ou aventureira que o cercava, e de manter no seio dela o respeito e até mesmo o temor. Assim constituíam-se pelo direito da força uns senhores feudais, por ventura mais absolutos do que esses outros de Europa, suscitados na Média Idade por causas idênticas”.

    A violência decorre ora do confronto com índios e aventureiros que viviam na região, ora dos embates entre os próprios fazendeiros, que, acostumados a mandar sem que ninguém os contrariasse, não podiam viver em paz senão apartados uns dos outros, entrando em confronto sangrento tão logo se encontrassem. A ação central de O sertanejo decorre de uma luta deste tipo, opondo o capitão-mor Campelo e o capitão Marcos Fragoso, cada qual à frente do seu exército particular.

    Assentada numa terra de conquista, tomada dos índios e mantida pela força das armas, a fazenda da Oiticica “era sujeita a um certo regime militar”, que impunha rígida disciplina aos seus habitantes, organizados numa hierarquia escrupulosamente observada por eles. No topo dessa ordem hierárquica encontram-se o capitão-mor Campelo e os membros de sua família. Depois vinham os empregados da fazenda. A primazia entre eles é do padre Teles e de Agrela, os dois conselheiros de Campelo. Um pouco abaixo situam-se o feitor da Oiticica e seu primeiro vaqueiro. Seguem-se, por fim, de forma indiferenciada, os demais servidores e escravos do lugar.

    Em paralelo à hierarquia social, ditada pelo lugar que os personagens ocupam no serviço da fazenda, uma segunda ordenação é definida pela relação que cada um mantém com a natureza selvagem. Nessa nova hierarquia, o ponto mais elevado é ocupado por Arnaldo, pelos índios e por Jó, um velho misterioso que, apesar de proscrito da fazenda, ajuda o sertanejo a salvá-la do cerco imposto por Fragoso. Da perspectiva romântica, que concebe a natureza como fonte das qualidades do herói, esses personagens são homens da floresta, que conhecem seus segredos e participam da sua força.

    A situação hierárquica de Arnaldo oscila ao longo da narrativa. Filho de Justa e do vaqueiro Louredo, o sertanejo é alvo do afeto do capitão-mor, que lhe reserva o honroso cargo de vaqueiro geral da Oiticica e pretende casá-lo com Alina, uma parente distante agregada ao núcleo familiar. Ao recusar o posto e o casamento, o sertanejo cria um novo ponto de conflito, pois Campelo já não sabe se lida com um homem fiel ou rebelde: “Uma vez já pedi permissão ao senhor Capitão-Mor para dizer-lhe que eu não pertenço ao serviço da fazenda. Não sei lidar com homens; cada um tem o seu gênio: o meu é para viver no mato”. É evidente que o proprietário da Oiticica, que não admitia ser contrariado, não poderia tolerar esta insubordinação. Quando o conflito entre os dois finalmente explode, o sertanejo abandona a fazenda e se refugia na floresta. A relação entre eles só é reatada quando o rapaz encontra uma vaca de estimação de D. Flor, desaparecida havia algum tempo, e a traz de volta para o curral. Esse episódio reintroduz o sertanejo na sociedade da Oiticica, agora na posição de vaqueiro. Mas sua inserção no grupo não está resolvida, pois se os empregados da fazenda reconheciam e aceitavam a nova posição de Arnaldo, ele próprio não o fazia: “Eu não sou vaqueiro, sou um filho dos matos, que não sabe entrar em uma casa e viver nela”.

    Por viver em contato direto com a natureza, o sertanejo ocupa o nível mais alto da hierarquia natural, ao lado de Anhamum, chefe dos índios jucás e antigo inimigo do fazendeiro, e de Jó, foragido da Oiticica desde que fora acusado do incêndio que quase matou a filha de Campelo. Ao contrário desses dois personagens, Arnaldo transita pelo mato e pela fazenda, congregando características de ambos. Homem das brenhas e vaqueiro da Oiticica, habita as bordas formadas pela interseção desses espaços, agindo como elo entre eles. Ao situar Arnaldo nos limites entre a fazenda e a floresta, Alencar o converte no mais autêntico representante do sertão, ele próprio um território intermediário, formado pelas terras que separam as vastidões desconhecidas das áreas mais densamente povoadas.

    A chegada de Fragoso ameaça a existência da Oiticica e o domínio de Campelo. É Arnaldo quem garante a vitória do capitão-mor e a manutenção da hierarquia encabeçada por ele. Dessa forma, sua relação com a sociedade da Oiticica é ambígua. Autossegregado do grupo por seus instintos de liberdade, ele o salva dos perigos que o ameaçam e deseja ter seu valor reconhecido por ele. Na verdade, a situação indeterminada de Arnaldo na hierarquia social funciona como motor de sua ação heroica, pois as aventuras que ele enfrenta são provas de valor que demonstram sua lealdade a Campelo e legitimam sua posição na fazenda.

    À medida que unifica esses dois mundos, Arnaldo assume a posição mais elevada dessa nova ordem constituída por seu olhar, que irá indicar quem deve e quem não deve fazer parte da comunidade. Entre os primeiros figuram os índios, que, ao desempenharem papel importante na batalha contra Fragoso, põem um fim à tensão que ameaçava a fazenda desde a sua fundação. Já entre os banidos encontram-se os forasteiros que se rebelam contra a autoridade de Campelo e permanecem alheios à natureza, sendo por isso expulsos do sertão. Do topo da árvore colossal onde arma sua rede, Arnaldo tudo enxerga, e seu olhar privilegiado integra numa única hierarquia ideal os habitantes da floresta e os da fazenda.

     

    Eduardo Vieira Martins é professor de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo e autor de A fonte subterrânea, José de Alencar e a retórica oitocentista (EDUSP, 2005).

     

    Saiba Mais - Bibliografia

     

    ALENCAR, José de. O sertanejo. São Paulo: Ática, 1996.

    ALENCAR, José de. O nosso cancioneiro. Campinas: Pontes, 1994.

    CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira, vol. 2. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981.