Narrativas mitológicas sempre foram um tema de muito interesse, tanto para o público adulto como o infantil, em manifestações diversas, como literatura, artes plásticas, cinema e, claro, quadrinhos. No Brasil, são fartas as adaptações de narrativas da mitologia clássica. De Monteiro Lobato às novelas, passando pelas histórias em quadrinhos de apelo erótico-humorístico, até as dedicadas inteiramente ao público infantil.
Narrativas míticas conhecidas de forma muito superficial ganharam nova apresentação nos anos 1970: além das cores vibrantes das capas, influência do psicodelismo, roteiristas beberam na fonte do cotidiano, mas as ações, apesar de contemporâneas, se passavam na Grécia Clássica. A Fditora Minami Cunha, em parceria com a Editora Sublime, seguiu esta linha, publicando em 1973 Mitoloria, uma série colorida e divertida de revistas em quadrinhos dedicadas à mitologia clássica.
O quadrinho Netuno e Hera teve roteiro de Minami Keizi e desenhos de Nico Rosso, ilustrador italiano radicado no Brasil, que também desenhou os outros álbuns da série Mitoloria com traço simples e marcante. Irônico, ele apresenta os deuses e as situações do cotidiano plenamente adaptadas ao mundo dos deuses no Olimpo.
A coleção Mitoloria foi produzida durante o período da ditadura militar, quando o Brasil vivia sob censura e os responsáveis pela manutenção da ordem e dos chamados bons costumes agiam com mão de ferro. censurado as músicas tocadas nas rádios, os filmes do cinema, os programas de TV, as revistas e os livros. Para contornar a situação, que tolhia não só a liberdade de expressão, mas influenciava a criatividade dos artistas, a alternativa de quadrinistas e roteiristas foi recontar narrativas míticas que tinham um forte apelo erótico e de liberação dos costumes, como forma de driblar os censores.
As aventuras de Netuno e Hera são o tema de Mitoloria. O roteirista não se restringe à nomenclatura do panteão grego e também recorre ao panteão latino, combinando os dois. As crises de ciúmes e outros episódios das narrativas míticas são mostrados como vivências dos que habitavam grandes cidades do Brasil do milagre econômico – período de crescimento robusto, entre 1969 e 1973.
Poseidon, o nome grego, ou Netuno, é apresentado como o soberano dos mares: um rei pequeno, gordo e barbudo que passa os dias no fundo do mar lendo gibis. Só escapa do tédio quando conhece a bela Hália, com quem se casa e tem filhos. É esse momento que o roteirista aproveita para exibir situações humanas, como crianças chorando, adolescentes problemáticos e pessoas com contas a pagar.
Na segunda narrativa do álbum, o tema é a deusa Hera. Ou Juno, do panteão latino. Ela é apresentada como uma bela mulher, de corpo perfeito, e extremamente ciumenta, tal como aparece em todas as narrativas míticas: perseguindo Zeus e suas amantes, bem como os frutos dessas relações extraconjugais. A história começa com o casamento de Zeus e Hera, conta a origem dos dois deuses e o início da vida de casados como reis do Olimpo.
Aqui, Zeus é um homem comum, que sai cedo para o trabalho e deixa a mulher às voltas com os afazeres domésticos. Instigada pela cabeleireira, Hera passa a desconfiar do marido. Filhos agitados, desconfianças e o peso da labuta diária despertam a ira da deusa. O cenário da casa dos deuses merece destaque: fogão, panelas, mesas e cadeiras são adornados com conchas e outros detalhes que remetem aos frisos das colunas dos templos gregos. É, no mínimo, curiosa a cena em que Hera manipula uma panela de pressão coberta de detalhes gregos.
Episódios como a interferência dos deuses na Guerra de Tróia são tratados de maneira jocosa, como se fossem apenas mais uma tarefa cotidiana a ser resolvida. Hera usa a sedução para interferir na guerra e recorre a outros deuses, tomando emprestado o cinto de Afrodite para parecer mais bela aos olhos de Zeus.
Mais do que apresentar narrativas da mitologia clássica ao grande público de maneira divertida, os autores de Mitoloria criticam com humor algumas mazelas do cotidiano das grandes cidades brasileiras do início da década de 1970.
Luciana de Campos é mestre em História pela Universidade Estadual Paulista e autora do artigo “Celtas, HQs e representações do passado”, in História, imagem e narrativas nº 6, 2008 (www.historiaimagem.com.br).Saiba Mais - Bibliografia
JÚNIOR, Gonçalo. Maria erótica e o clamor do sexo (A guerra dos gibis 2). São Paulo: Editoractiva, 2010.
RAMA, Angela. Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2004.
O Brasil, enfim, no Olimpo
Luciana de Campos