À procura de um desertor, uma escolta comandada por um oficial à paisana de uma embarcação militar alemã, a canhoneira Panther, desembarcou em 27 de novembro de 1905 em Itajaí, no litoral de Santa Catarina, sem permissão das autoridades locais, o que configurou violação da soberania nacional. Amplamente registrado pela imprensa, o episódio repercutiu no Congresso Nacional. O caso Panther adquiriu projeção maior do que se poderia esperar e assumiu dimensões de “um caso grave”, como foi qualificado pela imprensa, em razão da conjuntura internacional do início do século XX, caracterizada pela rivalidade e pela agressividade das potências imperialistas e pela xenofobia existente em setores da sociedade.
O barão do Rio Branco (1845-1912), ministro das Relações Exteriores, protestou energicamente e exigiu a entrega do fugitivo na hipótese de ele ter sido preso. Estava criado um incidente diplomático com desdobramentos imprevisíveis. As relações Brasil-Alemanha chegaram perto do ponto de ruptura. E a indignação da imprensa brasileira se estendeu à europeia e à de todo o continente americano, sobretudo a Argentina, que prontamente se mostrou solidária ao Brasil.
Diante do problema diplomático, Rio Branco atiçou o espírito da Doutrina Monroe, que desde 1823 declarava o continente americano como zona de defesa e influência dos Estados Unidos. Ciente da rivalidade entre os imperialismos emergentes da Alemanha e dos Estados Unidos, o barão procurou jogar a imprensa americana contra a potência agressora.
O ministro telegrafou a Joaquim Nabuco (1849-1910), embaixador brasileiro em Washington, com estas instruções: “Trate de provocar artigos enérgicos dos monroístas contra esse insulto. Vou reclamar a entrega do preso com condenação formal do ato... Se inatendidos, empregaremos a força para libertar o preso ou meteremos a pique a Panther. Depois, aconteça o que acontecer”.
Nabuco não entendeu corretamente a intenção de Rio Branco: procurou a Secretaria de Estado, que levou o assunto ao conhecimento do presidente Theodore Roosevelt (1858-1919). Na interpretação do Morning Post, de Londres, por exemplo, o recado brasileiro equivalia à aceitação tácita da Doutrina Monroe. Não houve pedido de intervenção, mas Rio Branco temeu que a comunicação do embaixador pudesse gerar equívocos de interpretação. De qualquer forma, ele não precisou consumar a ameaça, até porque a diligência determinada pelo comandante da embarcação de guerra não tivera sucesso.
No fim do século XIX, o ministro da Marinha da Alemanha, almirante Von Tirpitz (1849-1930), inspirado no pangermanismo, ideologia que defendia a união dos povos de língua alemã, tinha pretensões no Caribe e via a possibilidade de adquirir uma base naval no sul do Brasil. Entendia que a América do Sul era o único espaço remanescente da partilha do mundo em zonas de influência que poderia estar sujeito à expansão alemã, uma vez que as áreas da Ásia passíveis desse tipo de ação já estavam divididas ou em disputa pelas tradicionais potências imperialistas da Europa. O mesmo ocorria na África e na Oceania. Somente depois de sua unificação política (1870) é que a Alemanha ingressara em sua fase imperialista, chegando, portanto, atrasada em relação aos rivais europeus. A imprensa pangermanista via a possibilidade de “anexação política e econômica” da América Latina pelos Estados Unidos, causando preocupação por conta do risco que correria a identidade das colônias alemãs do sul do Brasil, além de eventuais prejuízos comerciais. Os pangermanistas não descartavam a possibilidade de confronto com os Estados Unidos por causa do Brasil. Queriam transformar sua Marinha na mais poderosa do mundo, assegurando, assim, a ligação com o sul do Brasil.
Os embaixadores da Alemanha em Washington e no Rio de Janeiro, em 1900 e 1901, já haviam negado a existência de qualquer propósito ambicioso do governo que representavam, mas num mundo em que eram frequentes as agressões de potências imperialistas contra nações militarmente fracas, o Ministério das Relações Exteriores brasileiro punha-se em guarda. Até Joaquim Nabuco, apesar de idealista nos assuntos internacionais, chegou a manifestar receio, em sua correspondência particular, de que as potências da Europa aplicassem à América Latina os critérios de partilha colonial. Ou sua divisão em áreas de influência, usada contra as nações africanas.
O temor de que o território nacional fosse atacado pelos alemães não era unânime, até porque era sabido que a denúncia do “perigo alemão” vinha dos norte-americanos dispostos a atrair ainda mais o Brasil para sua esfera de influência. Assis Brasil (1857-1938), enviado plenipotenciário do Brasil a Washington, manifestara, em janeiro de 1900, preocupação com a expansão germânica, mas no ano seguinte, ainda nos Estados Unidos, percebeu que o alerta que lá se mantinha sobre o perigo alemão era algo pensado. Em 1902, na Câmara dos Deputados, o pernambucano Barbosa Lima fez manifestação contundente contra os imperialismos, destacando o alemão, e chamando a atenção para a tendência expansionista norte-americana. Para o diplomata e historiador Oliveira Lima (1867-1928), os Estados Unidos, em 1905 e 1906, usavam, na sua política para o hemisfério, a Alemanha como um “espantalho”.
Rio Branco não se impressionava com a linguagem dos que denunciavam o perigo alemão, pois não atribuía muito valor ao que classificou de intrigas, originadas na Inglaterra e nos Estados Unidos. Até porque a presença de imigrantes alemães no Brasil não era expressiva. Sobre um ofício vindo de Buenos Aires com a data de 6 de março de 1906, o barão, entre outros comentários, escreveu que nos Estados Unidos havia um contingente imigratório de mais de 12 milhões de alemães ou descendentes, acrescentando que “nós não chegamos a ter 400.000 brasileiros de origem germânica, e, quando muito, 10.000 alemães não naturalizados”. Na Argentina, segundo o chanceler, havia um foco de intrigas motivado por razões de imigração. Mas, no caso Panther, deixou bem claro que nada seria capaz de arranhar a soberania nacional. Assumiu uma atitude mais enérgica do que em oportunidades anteriores, quando havia negociado com países vizinhos menos poderosos que o Brasil.
Mesmo com a possibilidade de um confronto bélico com a Alemanha, o chanceler se manteve intransigente até o incidente encerrar-se de modo inteiramente satisfatório para o Brasil. Em nota diplomática de 2 de janeiro de 1906, o ministro plenipotenciário da Alemanha no Rio de Janeiro, Von Teutler, em nome do imperador Guilherme II (1859-1941), respondeu à reclamação brasileira, esclarecendo que não houvera intenção de ofender a soberania territorial do Brasil, que Steinhof, o suposto desertor, nunca estivera a bordo da canhoneira, que os culpados passariam por julgamento militar e que o governo alemão lamentava o incidente, além de manifestar “os mais vivos protestos de amizade e consideração ao Brasil”. Com a nota de 6 de março, Rio Branco deu por encerrado o incidente, observando que o governo brasileiro apreciava “devidamente a retidão e presteza com que o Governo Imperial” procedeu no exame do caso, bem como “seus elevados sentimentos de justiça”, mas não deixou de lamentar o procedimento do comandante da canhoneira, sobretudo porque, conforme ele mesmo declarara, “contava com a boa vontade das autoridades territoriais, às quais compete, incontestavelmente, praticar as diligências de polícia, necessárias para a descoberta, captura e entrega de desertores.” O comandante, conde Saurma Jeltsch, mais tarde seria demitido e chamado à Alemanha.
O incidente não deixou sequelas nas relações Brasil-Alemanha. Não houve sequer alteração nas relações comerciais. No plano interno, o arranhão à soberania e a pronta reação brasileira acabaram contribuindo para que parte da opinião nacional sentisse e proclamasse a necessidade da amizade norte-americana para fazer frente às pretensões imperialistas europeias na América do Sul. A altivez de Rio Branco rendeu-lhe aplauso e respeito nessa parte do continente. Ao exigir plenas satisfações de uma das maiores potências militares do mundo de então e ao fazer constar que o Brasil não solicitara a intervenção do governo norte-americano, reverteu a violação de soberania em favor do prestígio brasileiro. A reparação de um incidente execrado pela opinião pública fez acréscimos ao amor próprio nacional e ao mesmo tempo reforçou o respaldo de opinião à presença de Rio Branco à frente do Itamaraty, que mais uma vez demonstrava que o brio nacional era inegociável.
Clodoaldo Bueno é professor da Universidade Estadual Paulista/Campus de Assis e coautor de História da política exterior do Brasil (Ed. da UnB, 2011).
Saiba Mais - Bibliografia
BURNS, E. Bradford. A aliança não escrita. O barão do Rio Branco e as relações Brasil-Estados Unidos. Trad. de Sérgio Bath. Rio de Janeiro: Funag; EMC; Ipri, 2003.
COSTA, João Frank da. Joaquim Nabuco e a política exterior do Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1968.
FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Rodrigues Alves: apogeu e declínio do presidencialismo. Rio de Janeiro: J. Olympio; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1973.
JOFFILY, José. O caso Panther. São Paulo: Paz e Terra, 1988.
LINS, Álvaro. Rio Branco. 2ª ed. São Paulo: Editora Nacional, 1965.
O caso ‘Panther’
Clodoaldo Bueno