Luiz Carlos Prestes foi uma das figuras públicas mais polêmicas, complexas e fascinantes da história política brasileira. Durante sua longa trajetória, colecionou admiradores e detratores. Para os primeiros, foi um líder heróico, que dedicou a vida à luta por um país melhor. Para os adversários conservadores, não passava de um traidor da pátria, inimigo do Brasil. No início, quando despontou na cena política, Prestes tinha, assim como os outros militares rebeldes da sua geração, ideais moderados. Mas sua incursão pelo interior do Brasil, à frente da Coluna Prestes, e a descoberta da situação miserável em que vivia a maioria do povo o levaram a adotar posturas mais radicais.
Prestes nasceu em Porto Alegre no dia 3 de janeiro de 1898, filho de um oficial do Exército que morreu cedo, deixando, além da viúva e do filho, quatro filhas. Como o pai, Prestes seguiria a carreira militar. Nos anos 1920, aproximou-se da juventude rebelde do Exército que viria a originar o tenentismo, movimento político-militar que se desenvolveu entre 1920 e 1935.
Em outubro de 1924, já como capitão, levou o Batalhão Ferroviário de Santo Ângelo, no Rio Grande do Sul, a aderir ao levante iniciado meses antes em São Paulo. Impossibilitados de manter domínio sobre a capital do estado, os revolucionários paulistas recuaram rumo ao interior, até o oeste do Paraná. Ali se encontraram com Prestes e sua tropa, decidindo que o combate contra as forças legalistas iria continuar. Começava, assim, a marcha que os levaria a cruzar boa parte do interior do país. Em 1927 entraram na Bolívia em busca de asilo. A imprensa batizou o pequeno exército rebelde de Coluna Prestes – no início, também chamada Miguel Costa–Prestes –, exaltando a figura do jovem capitão, atribuindo-lhe a alcunha que o acompanharia por décadas: “Cavaleiro da Esperança”.
Prestes se recusou a participar da Revolução de 1930 – movimento liderado por Getulio Vargas que tinha o objetivo imediato de derrubar o governo de Washington Luís. Considerava a trama armada uma mera disputa entre os governantes pelo poder. No mesmo ano, divulgou manifesto declarando sua adesão ao marxismo, e em 1931 seguiu para a União Soviética, no intuito de conhecer a “pátria do socialismo”.
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Após sua estada na URSS, Prestes retornou clandestinamente ao Brasil, no início de 1935, a fim de liderar as jornadas revolucionárias que estavam em gestação. Como resultado do malogrado levante de novembro desse ano, que passaria à história com o nome de Intentona Comunista, foi preso juntamente com milhares de pessoas Brasil afora. Ao sair da prisão após nove anos de cárcere, um elemento poderoso veio somar-se ao mito prestista: a imagem do martírio, que cresceria com a deportação de sua companheira, Olga Benário, para a Alemanha. Olga, que daria à luz a filha do casal (Anita Leocádia) na prisão, foi morta em um campo de extermínio nazista.
A adesão de Prestes significou um grande trunfo para o até então pouco expressivo Partido Comunista Brasileiro. O “Cavaleiro da Esperança” levou consigo seu prestígio pessoal e o PCB soube explorar a imagem popular do líder. Durante décadas ele foi homenageado e cultuado, num trabalho cuidadoso do que foi chamado de culto da personalidade.
A exploração do mito gerava bons dividendos políticos. Prestes foi apresentado à nação como a encarnação dos ideais revolucionários brasileiros, síntese máxima das virtudes e das promessas do comunismo. Sua imagem, estampada em flâmulas, selos, pôsteres, jornais, revistas e livros, inspirou poemas, canções e narrativas épicas. O culto chegou a tal ponto que o partido estabeleceu uma comemoração oficial na data do aniversário do herói, saudada com diversas celebrações. Ao longo dos anos, muitos militantes comunistas foram presos pela polícia política por soltar rojões no dia do aniversário do líder.
Ao apropriar-se do mito do Cavaleiro da Esperança, a intenção do Partido Comunista era conquistar o imaginário popular, que tradicionalmente associava o herói salvador à figura do paladino que, montado em seu corcel, combatia o mal e defendia as causas justas. Um exemplo dessa estratégia: no dia 29 de outubro de 1954, o PCB comemorou os 30 anos da Coluna Prestes. A data escolhida para marcar o início da epopéia militar (dia do levante do Batalhão de Santo Ângelo) é significativa, pois atribui a Prestes o papel de líder, relegando ao esquecimento outros personagens importantes daqueles eventos, como Miguel Costa e Isidoro Dias Lopes.
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A militância anticomunista também acreditava na eficácia política do mito Prestes, tanto que tratou de combatê-lo. Para ela, Prestes encarnava a imagem da traição, da covardia e da subserviência a ordens estrangeiras. Não era o Cavaleiro da Esperança, e sim o “Cavaleiro da Desesperança” e até mesmo o “Cavaleiro do Apocalipse” – mero traidor vendido ao “ouro de Moscou”. Chegaram a associá-lo à imagem de Calabar, que abandonou as tropas portuguesas para lutar ao lado dos holandeses que invadiram Pernambuco em 1630. Prestes foi também chamado de covarde e assassino, acusado de ser o responsável pela violência e pelas mortes ocorridas como desdobramento do episódio de 1935.
A chamada Intentona Comunista, levante organizado por Prestes e sufocado pelo governo Vargas, que perseguiu e prendeu vários de seus participantes, inclusive ele, foi o marco inicial do processo de transformação nas representações do personagem, que passaria de herói a bandido no discurso da grande mídia. Os argumentos antiprestistas se reproduziram ao longo do tempo, na mesma medida em que o líder permanecia como uma referência central para a esquerda brasileira.
Prestes e seu partido viveram uma fase gloriosa durante o final da Segunda Guerra Mundial. O líder dos comunistas foi anistiado e saiu da prisão após longa temporada. Ao mesmo tempo, o PCB voltava a atuar legalmente. Aquele foi um momento de grande crescimento político e eleitoral para o partido. Em poucos meses, o PCB viu sua militância passar de poucas centenas para milhares de pessoas, e recebeu votações expressivas nas eleições de 1945 e 1946. No decorrer de poucos meses, Prestes passou de preso político a senador da República e membro da Assembléia Constituinte, juntamente com uma consistente bancada comunista.
No mês de março de 1946, uma declaração do senador daria novo combustível aos seus inimigos e provocaria intensa agitação na imprensa e nos meios políticos. O dirigente máximo do PCB teria afirmado, em resposta a uma provocação, que, em caso de guerra com a URSS, os comunistas brasileiros ficariam ao lado dos soviéticos. O episódio gerou muita polêmica e foi um dos principais argumentos explorados pelos agentes de uma nova onda anticomunista, que culminaria com o fechamento do PCB, em 1947, sob a justificativa de que os comunistas seriam cidadãos impatrióticos e servis à URSS.
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Após a cassação dos mandatos dos parlamentares comunistas em janeiro de 1948, Prestes entrou em regime de clandestinidade rigorosa. Aturdido com uma reviravolta política que transformou seus líderes, num curto período, de figuras populares em fugitivos da polícia, o PCB reagiria adotando posições sectárias, típicas da Guerra Fria. Prestes desapareceu da cena pública durante dez anos, período em que poucas pessoas tiveram oportunidade de vê-lo. No plano pessoal, esse foi um momento importante, pois encontrou uma segunda companheira, Maria Ribeiro, com quem constituiu uma família com muitos filhos.
Em 1958, momento em que o PCB adotava linha política mais moderada e o país vivia ao embalo dos anos JK, Prestes emergiu da clandestinidade e retornou à vida pública. Este movimento foi facilitado por uma decisão judicial que revogou mandado de prisão preventiva contra ele, que desde 1948 era procurado pela polícia. Mas seus adversários encontrariam novos meios de atacá-lo. Prestes acabara de completar 60 anos e era considerado um homem velho para os padrões da época. Os retratos e reproduções dele que circularam até então mostravam um homem jovem, na faixa dos 40. Quando emergiu das sombras após uma década de clandestinidade, os jornalistas foram apresentados a um senhor sexagenário, embora ainda vigoroso.
A imprensa conservadora não iria perder a oportunidade de troçar da idade do líder comunista, que a partir daí passou a ser adjetivado como “velho”. Os caricaturistas souberam explorar o tema com humor e mordacidade. É importante destacar que seus amigos e seguidores mais próximos também passaram a chamá-lo de “Velho”, apelido que, em suas bocas, ganhava uma conotação carinhosa e respeitosa. A própria companheira de Prestes chamava-o assim.
A importância de Prestes como líder e símbolo da esquerda revolucionária pode ser avaliada por um detalhe revelador do pensamento dos vitoriosos de 1964: o líder dos comunistas brasileiros encabeçaria a primeira lista de cassações. Com esse gesto, o regime militar nomeava o seu inimigo número um. O golpe de 1964 significou uma derrota grave para os comunistas e para Prestes em particular. Seu prestígio entre a esquerda ficou muito abalado, e o brilho de sua liderança começou a esmaecer. Os comunistas foram considerados responsáveis pela derrota, e as novas gerações de revolucionários procuraram outras referências e outros guias para encontrar o caminho da sonhada transformação social. O “Velho” continuou tendo seguidores fiéis até o fim, mas o seu campo de influência foi se reduzindo, e até no PCB sua liderança passou a ser contestada, culminando num rompimento traumático para ambos em 1980.
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No seu enterro, em março de 1990, estiveram presentes líderes das várias correntes da esquerda, que se uniram, fugaz e temporariamente, na homenagem fúnebre. Bandeiras vermelhas apareceram nas janelas dos prédios ao longo do cortejo, numa tocante saudação ao homem que foi considerado por tanto tempo a referência maior da esquerda revolucionária no Brasil.
Rodrigo Patto Sá Motta é professor do Departamento de História da UFMG e autor dos livros Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva/Fapesp, 2002, e Jango e o golpe de 1964 na caricatura. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
O Cavaleiro e o Mito
Rodrigo Patto Sá Motta