Em 1914, quem observasse o garoto tímido chegando à redação do Diario de Pernambuco, no Recife, não poderia imaginar ser ele o autor das charges que começavam a ser publicadas naquele periódico. Ainda estudante do Ginásio Pernambucano, Joaquim Maria Moreira Cardozo (1898-1978), com apenas 15 anos e sob o pseudônimo de “J. Cardoso”, se tornara o primeiro chargista da grande imprensa pernambucana. Até então, o desenho de humor estivera restrito aos jornais satíricos daquele estado, como O Diabo a Quatro ou A América Ilustrada, publicados na segunda metade do século XIX.
Cardozo era o responsável pela parte visual das charges do Diario. O jornalista Jáder de Andrade (1886-1931), redator-secretário do periódico, era o autor dos textos que acompanhavam as ilustrações, assinando-as sob o pseudônimo de “XT”, uma maneira criativa de escrever “chiste”. A primeira charge da dupla foi publicada em 22 de fevereiro de 1914, aproveitando o período carnavalesco. Nela, o presidente da República, Hermes da Fonseca, vestido de arlequim e seguido por uma banda musical, dirigia-se ao baile do Partido Republicano Conservador (PRC), que lhe dava sustentação política. No fundo da cena, uma negra nuvem de fumaça se erguia como um ciclone ameaçador.
Os versos de XT, sob o título “Le Roi S’amuse” (O Rei se diverte), diziam: “Irrompe ao Norte o fogo crepitante/ De um Vesúvio terrífico e cruel.../ Em toda a amada pátria reina estuante/ Inominada e estúpida Babel.../ E, no entanto, a rir, segue contente/ Para o baile político-masquê,/ Vestido de Arlequim o presidente/ deste alegre cordão do PRC”.
O estilo de Cardozo é nitidamente influenciado pelo de J. Carlos (1884-1950), principal cartunista daquela época, com características do art déco e das novas técnicas de impressão. Esse traço contrastava a economia da linha clara com chapados pretos, sugerindo aqui e ali uma trama mais elaborada em um detalhe das roupas ou do cenário.
A introdução da charge política na grande imprensa pernambucana havia sido uma inovação do próprio Jáder de Andrade, convidado, aos 28 anos, a ocupar o cargo de redator-secretário do Diario de Pernambuco, que em 1913 havia passado a ser propriedade da família Pereira de Lira, após as tumultuadas eleições de 1911. O tradicional jornal se tornara o centro do conflito político entre as oligarquias latifundiárias daquele estado, representadas por Francisco de Assis Rosa e Silva (1856-1929), ex-ministro do Império e ex-vice-presidente da República, e o general Emídio Dantas Barreto (1850-1931), que defendia uma maior intervenção das Forças Armadas no cenário político. Ambos eram candidatos ao governo estadual em 1911.
Rosa e Silva arrematara o jornal em leilão público em 1905, e o usava como uma extensão da sua candidatura em uma batalha política que chegou ao auge com a sua eleição, em novembro. A vitória, porém, foi questionada pelos “dantistas”, que, controlando o Forte do Brum, apontaram seus canhões para a sede do governo. No final, o poder termina nas mãos do general derrotado.
Com a venda do jornal para a família Lira em 1913, havia a necessidade de reformar sua linha editorial e modernizar sua imagem. A introdução da charge foi uma das inovações criadas com esse objetivo.
A dupla J. Cardoso-XT permaneceu ativa até outubro de 1914, quando ambos saíram do jornal, após terem registrado as atividades de várias figuras públicas daquela época, como Estácio Coimbra (vice-presidente da República no governo Artur Bernardes, 1922-1926) e o novo presidente brasileiro, Wenceslau Brás (1868-1966). Joaquim Cardozo ainda publicou suas caricaturas nos anos seguintes na Revista do Norte, na Revista de Pernambuco e na Chic, abandonando o desenho de humor em prol de seu trabalho como engenheiro. Cardozo foi também dramaturgo e poeta.
Em 1940, como paraninfo de uma turma de formandos da Faculdade de Engenharia de Pernambuco, fez severas críticas ao Estado Novo e ao governo ditatorial de Getulio Vargas (1882-1954). Ao terminar o discurso, por ordem do então governador Agamenon Magalhães (1893-1952), foi imediatamente levado para um navio e exilado para o Rio de Janeiro. Aqui, foi acolhido por Oscar Niemeyer, que o integrou à sua equipe, sendo Cardozo, alguns anos depois, o responsável pelos cálculos matemáticos da construção de Brasília. Mas isso já é outra história...
Lailson de Holanda Cavalcantié cartunista e autor de Humor Diário (Editora Universitária UFPE, 1997).
Saiba Mais
FÉLIX, Moacyr. “Nosso adeus a Joaquim Cardozo”. In: Encontros com a Civilização Brasileira, vol. 6. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
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O chiste e o traço
Lailson de Holanda Cavalcanti