Em 2012, o corpo de D. Pedro I começou a ser estudado pela primeira vez com todos os recursos da atual medicina. Esse trabalho, conduzidopela arqueóloga Valdirene do Carmo Ambiel para o Museu de Arqueologia e Etnologia da USP com o fim de preservar os corpos, confirmou que nosso primeiro imperador fraturou quatro costelas ainda em vida e que seu coração foi retirado do corpo logo após falecer.Um documento histórico inédito, publicado nas próximas páginas, traz a versão da morte de D. Pedro I por meio do relato de seu médico particular, Dr. João Fernandes Tavares (1795-1874), que assinou o atestado de óbito e realizou a autópsia do ex-imperador do Brasil.
Até agora se conheciam apenas as informações que D. Amélia de Leuchtenberg, viúva de D. Pedro, relatara em uma carta para sua enteada Januária. O resultado da autópsia, impresso avulso em 1834, foi localizado em uma coleção particular no Brasil e seu proprietário gentilmente concordou em divulgá-lo. Com isso, temos finalmente acesso ao relato completo da morte de D. Pedro e das semanas que a antecederam, além de um histórico de sua saúde. Nas entrelinhas, percebe-se que o médico João Fernandes Tavares foi bastante explícito e detalhista ao narrar as causas da morte. Procurava, com isso, justificar sua conduta e afastar as suspeitas que recaíam sobre ele.
Quando D. Pedro I faleceu em Portugal, em 1834, o Dr. Tavares foi acusado de tê-lo envenenado. Era natural que se buscasse um bode expiatório, afinal, a morte ocorria pouco após D. Pedro vencer uma guerra civil contra seu irmão, o absolutista D. Miguel. Todas as esperanças de reconstrução de Portugal repousavam sobre D. Pedro. Havia dúvidas de que a nova rainha, D. Maria II, com seus 15 anos, fosse capaz de assumir as grandes responsabilidades que exigia um país recém-saído de uma guerra. A morte de D. Pedro podia significar uma nova oportunidade para os miguelistas.
A sucessão do trono português, vago desde a morte de D. João VI em 1826, tinha como pano de fundo um grande embate entre constitucionalismo e absolutismo. Filho mais velho e sucessor natural do pai, D. Pedro já era imperador do Brasil quando herdou a coroa portuguesa. Não podendo ser simultaneamente monarca dos dois países – sob o risco de reunificar Portugal e Brasil e com isso invalidar o processo da independência – deu uma Constituição para Portugal e em seguida abdicou em nome da filha Maria, então com 7 anos de idade. Seu plano era casá-la com seu irmão mais novo, D. Miguel, para que ambos governassem Portugal e ele próprio pudesse permanecer no Brasil. Mas havia enormes divergências ideológicas entre os irmãos. Miguel não aceitou se tornar o rei consorte de uma monarquia constitucional. Ele desejava ser um rei absolutista e governar Portugal sozinho. Influenciado por sua mãe, Carlota Joaquina, e com apoio da Igreja Católica e da Áustria, D. Miguel usurpou o trono português em 1828. Seu argumento era o de que D. Pedro, ao se tornar imperador do Brasil, passara a ser um estrangeiro e com isso perdera seus direitos sucessórios em Portugal.
Em 1831, D. Pedro abdicou do trono brasileiro, voltou para a Europa e angariou apoio entre os liberais da França e da Inglaterra. Penhorou bens pessoais, levantou fundos e reuniu exilados liberais no arquipélago dos Açores, último reduto português ainda não dominado pelas tropas realistas de D. Miguel. De lá organizou a armada que invadiu o continente, desembarcando ao norte da cidade do Porto, município favorável à sua causa. Contava com 10 mil soldados, em face dos 100 mil do exército português.
Durante o longo Cerco do Porto, o inverno úmido, a falta de alimentos, a água insalubre e as longas vigílias propiciaram o aparecimento de uma tuberculose em D. Pedro. Seu médico particular, o Dr. Tavares, participou ativamente de toda a campanha militar, durante a qual também dirigiu o Serviço Clínico do Exército. Formado em Coimbra com especialização na França, cuidava da saúde do ex-imperador há anos. Era pessoa de total confiança de D. Pedro e de sua esposa, tendo auxiliado também no parto da única filha do casal, Dona Maria Amélia.
Ao falecer, D. Pedro contava 36 anos incompletos – era bastante jovem mesmo para os padrões da época. Sua saúde, no entanto, já estava fragilizada. Segundo o testemunho de seu médico, ele sofria do fígado desde os 22 anos (embora fosse abstêmio) e desde a infância tinha problemas nos rins. O documento do Dr. Tavares cita ainda que, após dois acidentes equestres bastante graves (em 1823 e 1829), D. Pedro passou a sofrer também do pulmão esquerdo. Apesar de exímio cavaleiro, o próprio imperador contabilizava 36 graves quedas sofridas ao cavalgar. A de 1823 deixou-o de cama por vários dias e levou sua primeira esposa, a imperatriz Leopoldina, a fazer uma promessa oferecendo um enorme quadro à Irmandade da Glória em agradecimento pela recuperação de seu esposo. A tela ainda pode ser admirada no Museu da Imperial Irmandade de Nossa Senhora da Glória do Outeiro, no Rio de Janeiro. Mais grave foi o acidente de 1829: D. Pedro dirigia em alta velocidade uma carruagem pela rua do Lavradio, tombou e fraturou as costelas – o que lhe atingiu o pulmão.
Outro mal a acometê-lo era a epilepsia. O termo já era usado na época, embora as crises costumassem ser descritas como “ataque de nervos” ou “acidentes”. A família imperial sempre tratou a doença com franqueza e sem nenhum mistério. O próprio D. Pedro falava e escrevia sobre o assunto sem pudor, até mesmo com diplomatas estrangeiros. Entre os 13 e os 16 anos, o príncipe já havia sofrido seis severos ataques epiléticos, um deles em público, durante as solenidades do aniversário de D. João VI, seu pai. Dizia que a moléstia era herança dos Bourbons, família de sua mãe.
Sua saúde piorou muito após a abdicação e durante a guerra civil portuguesa. Ao fim dos combates, em 1833, o ex-imperador já tinha seus dias contados. Em novembro, apresentava inequívocos sintomas da tuberculose: episódios de bronquite com febre nos quais ele tossia sangue. O ano seguinte foi bastante produtivo, mas sua atividade política não escondia o fato de estar gravemente doente. Na noite de 27 de maio, por exemplo, compareceu ao Teatro São Carlos em Lisboa, onde se deparou com vaias e xingamentos da plateia, indignada com a anistia concedida aos absolutistas. Furioso, D. Pedro teve um ataque de tosse e seu lenço ficou nitidamente manchado de sangue, silenciando o público presente.
No final de julho, fez questão de retornar ao Porto para agradecer à população o apoio incondicional que recebera durante as batalhas. Apesar do clima festivo, ele próprio mencionou sua limitação de saúde na Proclamação aos Portuenses: “apesar de não estar ainda completamente restabelecido da doença, da qual tantas fadigas e trabalhos, por vós presenciados, foram a principal causa, eu não quis por mais tempo demorar a minha vinda a esta mui nobre e leal cidade”. Bastante debilitado pela viagem, no final de agosto empreendeu uma visita à estância hidromineral de Caldas da Rainha, onde procurava a cura ou pelo menos alívio para seus males. Não tendo alcançado nem um nem outro objetivo, voltou ainda pior. Começaram ali os rumores de que seu médico teria aproveitado a ocasião para envenená-lo.
Havia quem pensasse que o Dr. Tavares poderia estar agindo a mando dos miguelistas. Estes se defendiam alegando que era a maçonaria que teria interesse em envenenar D. Pedro, em retaliação aos poucos cargos obtidos no novo governo, após todo o apoio prestado à causa liberal. De qualquer forma, sobre o Dr. Tavares pesava a sombra de ter sido o tradutor para a língua portuguesa do Tratado dos venenos e seus antídotos, obra escrita por seu antigo professor em Paris, Mateus Orfila.
Ao retornar para Lisboa, D. Pedro quis se mudar para o Palácio de Queluz, nos arredores da cidade, onde havia nascido. Pressentindo o fim, ditou seu segundo testamento, no qual pedia para ser enterrado como general e não como rei. Foi atendido: ao abrirem seu túmulo, em 2012, D. Pedro estava fardado e condecorado como general português, sem nenhuma menção ao Império brasileiro que fundou.
No dia 18 de setembro ainda enviou uma carta aos deputados portugueses comunicando que estava morrendo: “Senhores Deputados da Nação Portuguesa: sempre franco e fiel aos meus juramentos, e obedecendo à voz da minha consciência, vou participar-vos que tendo ontem cumprido os deveres de filho da Igreja Católica e de pai de família, julgo também do meu dever participar-vos que o mesmo estado de moléstia, que ontem me ditou aquelas resoluções, me inibe de tomar conhecimento dos negócios públicos, em cujas circunstâncias vos peço queirais prover de remédio. Eu faço os mais ardentes votos ao Céu pela felicidade pública”. A carta causou rápida reação: no dia seguinte foi decretada a maioridade de D. Maria II, aos 15 anos, a fim de que o país não mergulhasse em outro período acéfalo.
No dia 20 de setembro, em seu primeiro ato como rainha, D. Maria da Glória concedeu ao pai a Grã-Cruz da Torre e Espada. A condecoração foi encontrada junto aos restos mortais de D. Pedro durante a exumação. No dia seguinte o ex-imperador recebeu o viático, sacramento cristão só concedido a quem está prestes a morrer. Ainda agonizaria por mais três dias, até finalmente falecer na Sala Dom Quixote, mesmo quarto em que nascera.
Segundo a famosa carta de D. Amélia para sua enteada, D. Pedro “expirou em meus braços no Palácio de Queluz a vinte e quatro de setembro pelas duas horas e meia da tarde, depois de longos e cruéis sofrimentos, que suportou com resignação e piedade, não se iludindo nunca a respeito de seu estado. Morreu como um santo mártir e filósofo cristão e jamais houve morte tão tranquila”.
A autópsia constatou falência de diversos órgãos. Na mesma carta da ex-imperatriz, ela explica: “a enfermidade de teu infeliz pai data do Porto; pela autópsia do corpo viu-se que o pulmão direito estava cheio de água, que continha mais de dois litros e o esquerdo não existia. O coração estava dilatado”. Provavelmente o comprometimento dos pulmões e do fígado sobrecarregou o coração, que por isso encontrava-se hipertrofiado. Já a diferença entre os dois pulmões, possivelmente pode ser explicada pelo fato de que as costelas quebradas prejudicaram o funcionamento do pulmão esquerdo, favorecendo a instalação da tuberculose no direito, mais oxigenado.
O coração de D. Pedro foi retirado de seu corpo durante a autópsia, embalsamado e enviado alguns meses depois para a cidade do Porto. Conforme seu último desejo, encontra-se até hoje guardado dentro de uma urna na Igreja da Lapa. Os funerais foram realizados no Panteão de São Vicente de Fora, mausoléu da família Bragança. Seus restos mortais repousariam em Lisboa até 1972, quando, em comemoração ao sesquicentenário da Independência, foram trasladados para o Monumento do Ipiranga, junto ao Museu Paulista, na cidade de São Paulo.
Ao médico acusado de assassinar D. Pedro, D. Maria II concedeu a nomeação de cavaleiro de Nossa Senhora de Vila Viçosa dois meses após a morte do pai, “em testemunho de gratidão pelos assíduos cuidados e reconhecido interesse com que se esforçou para prolongar a vida de dom Pedro”. Foi a forma encontrada de isentá-lo das suspeitas de envenenamento. Mesmo assim, o Dr. Tavares preferiu voltar para o Brasil, onde só tornou a se manifestar publicamente sobre o assunto quase 20 anos depois. No dia 7 de abril de 1853, aniversário da abdicação de D. Pedro, ele publicou no Jornal do Commercio uma carta se defendendo das acusações que sofrera em Portugal: “Há quase dezenove anos que sobre mim pesa uma calúnia horrorosa e até hoje deferi em justificar-me, convencido que vivi sempre de que o bom senso universal refutaria tão atroz e absurda suspeita julgando impossível a existência de um tal crime”. Uma das provas de sua inocência, alegava, era a proteção que sempre recebera da imperatriz-viúva D. Amélia.
Novamente tocou neste assunto ao escrever para o jornal Correio da Europa em 28 de novembro de 1867: “enfermou Sua Majestade Imperial, e o mundo teve o pesar, e Portugal a desgraça de perdê-lo. Foi seu corpo por mim embalsamado, seu magnânimo coração preparado para ter longa duração, e tanto a teve que a comissão médica que foi ao Porto vinte e quatro anos depois para examinar-lhe a conservação achou no mais perfeito estado esta relíquia sagrada”.
Trabalhando no Brasil como médico, professor e escritor, ficou conhecido como “Doutor Canudo” por ter trazido para o país o até então desconhecido estetoscópio, instrumento originalmente concebido para que os médicos pudessem auscultar suas pacientes sem precisarem encostar em seus seios. Esses primeiros estetoscópios eram cilindros de madeira com um palmo e meio de comprimento, realmente parecidos com canudos.
Percebendo a necessidade de melhor organizar o corpo médico do Rio de Janeiro e de Niterói, até então com pouca expressividade política, o Dr. Tavares tornou-se o primeiro presidente do Imperial Instituto Médico Fluminense, criado em 1867 com o objetivo de promover o debate de questões médicas entre os profissionais e auxiliar o governo em relação ao problema das epidemias que grassavam na época. Ele também foi, em 1838, um dos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Apesar de ter passado o restante de sua vida no Brasil, a pedido de D. Amélia, o Dr. Tavares tornou-se Visconde de Ponte Ferreira em Portugal, em 1872, durante o reinado de D. Luis (1838-1889), neto de D. Pedro.
Novos estudos sobre as causas da morte do ex-imperador devem ser realizados nos próximos anos. Tendo agora em mãos o resultado da autópsia, poderemos confrontar o documento com as descobertas científicas do século XXI. Não é sempre que a medicina do século XIX pode ser tão explicitamente contrastada com a de nossos dias.
Claudia Thomé Witteé pesquisadora independente e coautora do livro O Brasil como Império(Companhia Editora Nacional, 2009).
Ao Porto, o coração
Após o desembarque no Mindelo, ao norte de Portugal, no dia 9 de julho de 1832, as tropas liberais de D. Pedro permaneceram sitiadas pelo exército de D. Miguel na cidade do Porto até agosto de 1833. A longa resistência ficou conhecida como Cerco do Porto e permitiu a reconquista do trono português pelos liberais.
Na cidade sitiada faltavam alimentos, lenha e recursos para pagar os soldados. Recorrentes epidemias de cólera e tifo dizimavam a população, que já sofria com constantes bombardeios e ainda teve que sobreviver ao rígido inverno do início de 1833. Apesar de tudo, a identificação com a causa fez com que as tropas não capitulassem nem perdessem o apoio da cidade.
Com mais recursos, angariados em Londres graças aos esforços do Duque de Palmela, na primavera de 1833 a estratégia mudou. Mais navios e novos voluntários permitiram um desembarque secreto no Algarve, ao sul de Portugal, de onde tropas das forças liberais lideradas pelo Duque da Terceira tomaram Lisboa de surpresa e reverteram a situação. O Marechal Saldanha regressou então no dia 20 de agosto de 1833 para libertar a cidade do Porto, cujo apoio incondicional garantira a vitória da causa liberal. Desde então, a cidade passou a adotar o codinome de “Invicta”.
D. Pedro seria sempre grato aos “leais e heroicos portuenses”, deixando como prova deste sentimento a disposição de que seu coração embalsamado lá permanecesse para sempre.
Saiba Mais - Bibliografia
LUSTOSA, Isabel. D. Pedro I. Série Perfis Brasileiros. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
MACAULAY, Neill. Dom Pedro I. Rio de Janeiro: Record, 1993.
SALLES, Iza. O coração do rei. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008.
SOUSA, Octavio Tarquinio de. A vida de Dom Pedro I. São Paulo: Livraria José Olympio Editora, 1954.
O doutor era inocente
Claudia Thomé Witte