Para ele, a fotografia era uma forma de experimentar o mundo, de pôr em prática um olhar sensível. E foi com sensibilidade extrema que Thomaz Farkas lançou seu olhar sobre o Brasil. Húngaro de Budapeste, nasceu em 17 de setembro de 1924 e naturalizou-se brasileiro em 1949, aos 25 anos. Morreu aos 86, em 25 de março do ano passado, em sua casa na capital paulista.
Sua trajetória profissional percorreu diversas frentes. Além de fotógrafo, foi empresário, produtor de cinema, dono de galeria e acadêmico. Todos esses projetos estão associados ao reconhecimento da produção de imagens em fotografia e cinema como uma experiência estética relevante para a cultura brasileira contemporânea. Farkas se considerava um artífice. Para ele, sua atividade era uma forma de comunicar o que trazia dentro de si, e isso dificilmente se tornaria uma mercadoria.
O que se escreveu sobre Farkas após sua morte sequer chega perto de sua personalidade iluminada. Ele tinha a capacidade de se espantar, todos os dias, com o que enxergava pelo visor da câmera. Nos depoimentos sobre sua trajetória, no entanto, há dois pontos de convergência: sua inegável contribuição para a consagração da fotografia como expressão estética do Brasil; e, contraditoriamente, o distanciamento que teve da prática fotográfica entre os anos 1960 e a exposição “ThomazFarkas, fotógrafo”, em 1997, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, quando publicou o livro que leva o mesmo título.
Nesse intervalo, dedicou-se ao cinema documental, sempre em busca da alma , sem, no entanto, abandonar radicalmente os registros fotográficos. Seu arquivo serviu, inclusive, de base para uma releitura pessoal e atualizada do próprio trabalho. Isso tudo está tudo no livro e na exposição “ThomazFarkas, umaantologiapessoal” (Instituto Moreira Salles, 2011).
Cinco imagens publicadas nas antologias de 2002 e de 2011 servem de balizas visuais para recompor os percursos do seu olhar fotográfico. Mudanças nas formas de expressão e no conteúdo indicam o deslocamento de experimentações formais para a busca da presença do sujeito, que se revela em imagens onde as pessoas são o tema central. Isso acontece com o produtor da imagem, o fotógrafo que adere ao que fotografa, e com o sujeito que é fotografado e que negocia sua imagem com quem o retrata. E, naturalmente, sem perder o apuro técnico.
As fotografias de Brasília destacam a relação entre espaço construído e espaço vivido. Naque mostra o esqueleto das torres do Congresso Nacional, os objetos centrais são tanto o prédio modernista quanto o projeto de ocupação do interior do Brasil, pois ambos relacionam a ocupação do planalto central de forma racional e programada, tendo como protagonistas os cidadãos e como tema fundamental a política. Outra mostra omesmo Congresso Nacional no dia da inauguração da nova capital,deslocando o centro do foco para as pessoas e, ao mesmo tempo, transformando o desenho arquitetônico em moldura para a marcha rumo a um novo Brasil.
Nas outras fotos, Farkas se desloca do espaço ordenado pela distribuição simétrica de luzes e sombras de uma São Paulo vazia – o deserto Mirante do Trianon em 1945– para um Rio de Janeiro dionisíaco, repleto de pessoas demarcando seu território em uma roda de samba de 1946. No caso da foto do Trianon, a cidade é uma construção formal que se traduz em paisagem plástica. São Paulo é uma projeção ao fundo. No centro da foto, um poste de iluminação é o fiel da balança entre o dia e a noite. Na roda de samba, a cidade é o resultado de uma vivência. Aproximando-se de seu objeto, o fotógrafo se mistura ao tema, tornando-se, ele mesmo, sujeito da ação que fotografa, numa imagem onde a vida pulsa. Dois sentidos, quase opostos, produzidos por uma mesma pessoa.
Comparando esses dois pares, eles revelam ainda um aspecto de como Farkas operava com a linguagem fotográfica. Em ambos há um deslocamento do objeto central da foto, da paisagem para as pessoas, que revela o manejo de recursos técnicos para enquadrar o conjunto ou para aproximar-se do objeto. Os tipos de lente – normal ou teleobjetiva – influenciam também no posicionamento diferenciado do fotógrafo. Para quem vê, no primeiro caso ele é um observador contemplativo; já no segundo, é chamado a participar da cena também como um de seus protagonistas.
Já a imagem do futebol na areia da Praia de Copacabana, de 1940, pode ser considerada uma imagem síntese para uma apreciação mais detida da obra de Farkas. A escolha foi completamente arbitrária, mas plenamente justificada, inclusive pelo próprio fotógrafo, em sua publicação de 2002: “O jogo mais em voga na época, também na praia, era o futebol (...). Tenho quatro ou cinco fotos parecidas, com ou sem goleiro. A que está aqui é a mais feliz (mesmo porque dependeu do gol...)”.
O interessante dessa imagem é que ela é, ao mesmo tempo, a expressão de um rigor formal de planos, linhas e ângulos – o chão de areia, a trave e o corpo do goleiro contra um fundo emoldurado pelas formas sinuosas do morro do Pão de Açúcar. Há também a presença de diferentes sujeitos e a potência da sua ação: o fotógrafo que captura a imagem no momento certo; o jogador, mesmo fora de quadro, que lança a bola em direção ao gol; o goleiro que pula para defender o gol; além dos sentimentos contraditórios, como alegria, raiva e excitação.
Essa foto, seguindo as pistas indicadas por João Paulo Farkas, filho do fotógrafo, é reveladora tanto dos elementos fundadores da técnica de Farkas – composição, textura, enquadramento, relação fundo-figura, foco e desfoque, altas luzes e baixas luzes – quanto das evidências de novos interesses e temas para o fotógrafo, dentre eles, a vida das pessoas comuns.
Mas, afinal, por que a produção fotográfica de Farkas até os anos 1960 foi arquivada e somente depois de anos reavaliada? As leituras que João Paulo faz de seu pai ajudam a compreender. Uma delas é o fato de ter sido “muito influenciado por uma visão de mundo à esquerda (...) e pela busca de transformação da vida social. O cinema tornara-se a sua paixão.”
Paixão que estaria associada a uma imagem militante e engajada na transformação social, à maneira das iniciativas latino-americanas dos anos 1950 e 1960 para construir “pontes clandestinas”entre modos de filmar a realidade revolucionária das Américas, por meio de documentários que revelaram as condições sociais do Brasil profundo.
A retomada dos arquivos e a construção de uma memória da prática fotográfica, em 1997, indicam a importância que Farkas passou a atribuir à experiência fotográfica, anterior ao cinema. Essa experiência se manifesta pelo reconhecimento da fotografia como prática transformadora que traduz o mundo visível em linguagem, tornando-o apreensível como forma comunicativa por um público cada vez maior. Um mundo de imagens que esclarecem e encantam.
O retorno de Farkas às imagens fundadoras revela uma consciência histórica precisa que se expressa, em primeiro lugar, pelo seu investimento na memória-arquivo, pelo seu trabalho de anotar, registrar e organizar suas imagens; em segundo, por uma percepção clara de seu tempo, que se traduz no trabalho de rememoração e atualização do registro fotográfico. Com esses elementos, ele pôde elaborar uma narrativa visual que, apropriando-se de imagens passadas, projetam um futuro possível.
Ana Maria Mauadé professora da Universidade Federal Fluminense e autora de Poses e flagrantes: ensaios sobre história e fotografias (EDUFF, 2008).
Saiba Mais - Bibliografia
AVELLAR, L. C. A Ponte Clandestina: diálogo silencioso entre os cineastas latino-americanos nos anos 1950 e 1960. São Paulo: Edusp e Ed. 34, 1995.
FARKAS, João Paulo. “Livro de olhar”, IN: Thomaz Farkas: uma antologia pessoal. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 2011.
FARKAS, Thomaz. Thomaz Farkas. São Paulo: Edusp, 2002.
O enquadramento do espanto
Ana Maria Mauad