O escultor e o poeta

Rose Lene Ferrante

  • De autoria do italiano Pasquale De Chirico, o monumento a Castro Alves, na homônima praça de Salvador, foi inaugurado em julho de 1923 ao se completarem 50 anos da morte do poeta. (Foto: Adenor Gondin / Bahia Images)No topo da montanha, o poeta Castro Alves parece declamar poesias para os observadores. Sua estátua em bronze, emoldurada pela Baía de Todos os Santos, chama o povo para ocupar a praça. “A praça! A praça é do povo como o céu é do Condor”, diz seu conhecido poema O povo ao poder, publicado em 1864. 
     
    “A Praça Castro Alves é do povo como o céu é do avião”, proclamou o compositor Caetano Veloso, atualizando o verso no alto de um trio elétrico, quase meio século depois de inaugurada a estátua. E a cada festa carnavalesca a praça que homenageia o poeta baiano revigora-se com vozes, cores e alegria. 
     
    Timbrada em bronze, a imagem do afamado poeta é obra do italiano Pasquale De Chirico, artista responsável por um amplo conjunto de esculturas em Salvador na primeira metade do século XX. Representou personalidades ilustres da história oficial, como o Barão do Rio Branco (1919), o general Pierre Labatut (1923), o Visconde de Cairu (1932), o 8º Conde dos Arcos (1932), D. Pedro II (1937), padre Manoel da Nóbrega (1943) e o bispo Pero Fernandes Sardinha (1944). A mais notória e consagrada de todas, no entanto, é mesmo a de Castro Alves, de 1923.
     

    Na quina da coluna, a alegoria feminina, símbolo das poesias de Castro Alves, e o anjo com as correntes da escravidão quebradas. Na pág. ao lado, a estátua do poeta, com o braço levantado. (Foto: Adenor Gondin / Bahia Images)

    Pasquale De Chirico nasceu na cidade de Venosa, região da Basilicata, e teve no convívio com parentes artistas a influência fundamental para desenvolver técnicas de desenho e escultura. O mais famoso de seus primos seria o pintor Giacomo De Chirico (1844-1883). Com 20 anos e formação completa em escultura, Pasquale De Chirico chegou a São Paulo em 1893. Na capital paulista aproximou-se do Liceu de Artes e Ofícios, que possuía equipadas oficinas de fundição. Aos poucos conseguiu dar visibilidade aos seus trabalhos, confeccionando pequenas estatuetas em bronze, medalhões e bustos. 

    Sua transferência para Salvador ocorreu por conta da reconstrução do edifício da Faculdade de Medicina da Bahia, no Terreiro de Jesus, após o incêndio de 1905. O escultor foi contratado para confeccionar uma série de estátuas para a ornamentação do novo edifício, e logo inseriu-se na vida artística da cidade. Ainda em 1908 fez seu primeiro estudo para um monumento a Castro Alves.

    Novas encomendas viriam: em 1913 recebeu da Associação dos Empregados do Comércio da Bahia a incumbência de executar um monumento-estátua para louvar a memória do Barão do Rio Branco. A obra foi inaugurada em 1919, e nesse mesmo ano Pasquale assinou novo contrato com a Comissão Executiva do Monumento a Castro Alves. A estátua seria, enfim, inaugurada em 6 de julho de 1923 – quando se completavam 50 anos da morte do poeta – acompanhada pelas personagens Lucas e Maria, pela alegoria do Gênio e pelo Anjo da Liberdade.
     
    A conhecida imagem na praça de mesmo nome poderia ter sido bem diferente, pois a primeira maquete de Pasquale De Chirico para o monumento, a de 1908, trazia o poeta em meio a rochedos e, na parte inferior, homens e mulheres em forte tensão representando a dor e o sofrimento dos escravos. Em 1919, a comissão construtiva tinha novos membros e solicitou ao artista outro projeto para a obra. Foi então que surgiu a imagem que conhecemos: no alto de uma coluna, como se estivesse em uma tribuna, acentuando a verticalidade do conjunto.
     

    (Foto: Adenor Gondin / Bahia Images)

    O escultor enviou a figura de Castro Alves modelada no barro para as oficinas Ângelo Aureli, em São Paulo, para ser fundida em bronze. A peça retornou em 1922, foi guardada no andar térreo do Teatro São João e quase acabou consumida por um incêndio um mês antes da inauguração, salva a tempo pelo Corpo de Bombeiros. 

    Em termos plásticos, o monumento a Castro Alves cumpriu rigorosamente o projeto da maquete. No alto da coluna aparece o poeta de pé (posição pedestre), com roupa de gala e braço direito levantado, reproduzindo posição que ocupou por diversas vezes na tribuna do Teatro São João. Na mão esquerda, um chapéu mole de estudante para lembrar seu precoce falecimento, aos 24 anos. Cabeça erguida e posição altiva correspondente à de quem declama poesias com vigor e confiança. 

     
    Na base frontal do conjunto, duas estátuas representam os escravos Lucas e Maria, personagens centrais do drama A cachoeira de Paulo Afonso, escrito por Castro Alves em 1864. Na interpretação do escultor, Maria aparece prostrada, com nítida expressão de desolação e fragilidade, enquanto Lucas está de pé, personificação de resistência, liberdade e altivez. Na quina da coluna, um Anjo segura uma corrente, simbolizando os grilhões quebrados e a liberdade conquistada por todos os escravos, e uma alegoria feminina, Gênio, que representa as poesias de Castro Alves sobre os negros cativos. Uma placa com os dizeres “A Bahia a Castro Alves” completa a composição de 9,6 metros altura. A base é de granito originária das margens do rio Paraguaçu e doada pela Companhia Linha Circular de Bondes. 
     
    O mar participa como cenário para a obra – o mesmo mar cantado nos versos, porta de entrada dos cativos. Assim Pasquale De Chirico fixou a figura do poeta na paisagem, olhar ao infinito, lembrando aos passantes a força da fala, dos versos e da poesia. Uma obra de sóbria simplicidade, cumprindo o destino de honrar a memória de Castro Alves. 
     

    Os escravos Lucas e Maria, personagens do drama de Castro Alves A cachoeira de Paulo Afonso. Na cripta adaptada na base do monumento repousam os restos mortais do poeta. (Foto: Adenor Gondin / Bahia Images)

    Faltava-lhe, porém, um mausoléu individual no cemitério Campo Santo, conforme o desejo da mesma comissão construtora do monumento. Várias campanhas para arrecadar verbas foram lançadas nos anos subsequentes à inauguração do monumento público. Nas décadas de 1930 e 1940, esteve o jornalista e crítico de arte Carlos Chiacchio à frente da empreitada: ele chamava Castro Alves de “poeta sem túmulo”. Escreveu recorrentes textos nos periódicos locais cobrando das autoridades uma ação diante de tal situação, considerada por ele um descaso à memória de um “filho ilustre”.  Mas foi preciso que se completasse um século da morte do poeta para que a Prefeitura de Salvador revertesse a omissão. Em 1971 os restos mortais do poeta foram retirados do túmulo da família e trasladados para uma cripta adaptada na base do monumento, ao som da Canção para o centenário de Castro Alves, elaborada especialmente para esse fim e entoada pelos presentes. Os jornais da época destacaram a duradoura presença do poeta, no coração da Cidade Alta, cem anos após sua morte.

    Assim como fez seu principal homenageado na literatura, Pasquale De Chirico produziu um amplo conjunto de desenhos e estatuetas que tem como personagens homens, mulheres e crianças afrodescendentes. Em 1938, quando da comemoração do 50º Ano da Abolição, Carlos Chiacchio organizou a exposição “O negro no sentimento nacional”, incluindo a maquete do projeto Mausoléu a Castro Alves. 

    As estátuas presentes no espaço público cumprem a função de relembrar e de se fazerem presentes nas lembranças dos espectadores, algumas com mais força do que outras. Castro Alves foi uma empreitada feliz de homenagem, lembrança e identidade baiana. Ao escrever sobre os principais monumentos culturais da cidade em A Bahia de Todos os Santos (1944), o escritor Jorge Amado menciona a posição altiva da estátua no alto da montanha, na praça em sua homenagem. Para ele, o poeta do monumento estende a mão libertária, e sua figura há muito se entrelaçou à memória da cidade. Lançada no tempo, a figura em bronze desafia as intempéries do efêmero: anualmente, nas festas de carnaval, seu nome ressurge. A Praça Castro Alves e o conjunto escultórico ao poeta constituem elementos importantes na construção de um repertório carnavalesco de Salvador, seja no encontro de trios elétricos, ou como palco de apresentações de músicas e danças. Ainda que seja resíduo de valores e símbolos de épocas passadas, a escultura renova sua ressonância na cultura e na história locais. 
     
    Rose Lene Ferrante é pesquisadora do Centro de Pesquisa e Documentação do Livro Raro do Mosteiro de São Bento da Bahia e autora da dissertação “Entre ‘deuses de bronze’ e ‘homens de papel’: Análise das obras do escultor italiano Pasquale De Chirico em Salvador, 1906-1944” (Unicamp, 2014). 
     
    Saiba mais
     
    ARAUJO, Emanoel & LAUDANNA, Mayra. De Valentim a Valentim: a escultura brasileira, século XVIII ao XX. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado/ Museu Afrobrasil, 2010.
     
    FERRANTE, Rose Lene. “Entre ‘deuses de bronze’ e ‘homens de papel’: Análise das obras do escultor italiano Pasquale De Chirico em Salvador, 1906-1944”. Dissertação de Mestrado em História, Unicamp, 2014.
     
    LEITE, Rinaldo C. N. A Rainha Destronada: discursos das elites sobre as grandezas e os infortúnios da Bahia nas primeiras décadas republicanas. Feira de Santana: UEFS Editora, 2012.