Em fins da década de 1990, ainda muito jovem, recebi um convite para um trabalho de mestrado, que me deixou estremecida: estudar um manuscrito grego pertencente ao acervo da Biblioteca Nacional, convite feito pelo professor de grego Jacyntho Lins Brandão, conhecido por sua inteligência notável, dentro e fora do âmbito universitário.
Iniciada a pesquisa, me vi tomada pelo espírito “Indiana Jones”, inebriada pela aura de um códice (livro feito de couro), com as letras mais belas de que já havia tido conhecimento na vida.
O meu caminho pela história brotou muito antes. Quando quis estudar literatura (primeiro estágio que me levaria às Letras), vi o quadro da sala de aula vestido de letras gregas, e um tal de Píndaro me foi apresentado. Já havia me apaixonado por Borges, Pessoa, Machado, Camões, Shakespeare – inconscientemente, já escolhia helenistas – e então as letras gregas me fizeram dar um pulo na história, chegando a Sófocles e Homero. Fui atrás do berço do Ocidente.
Quando concluí o mestrado, achava que tinha entendido alguma coisa de letras e livros. A maturidade me mostraria o quanto eu não sabia nem nomear aquilo o que eu não sabia. O que me faz lembrar Heráclito, aquele que, já no século VI a.C., escreveu tudo aquilo que a humanidade precisava saber: disse que não entramos duas vezes no mesmo rio – complementado por Borges e sua explicação de que nem o rio é o mesmo e muito menos nós (não menos fluidos do que o rio). Quando relemos um livro, sabemos que o livro é outro, pois tudo é outro.
A minha tese de doutorado, que me levou a Roma para aprender paleografia, foi apresentar uma hipótese consistente de datação do manuscrito grego da Biblioteca Nacional. Trata-se de um códice em pergaminho que contém os quatro evangelhos do Novo Testamento grego. Foi produzido provavelmente na segunda metade do século XII ou no início do século XIII. Agora vou publicar o trabalho em forma de livro.
Na docência, confirmei o meu sopro histórico. Fui então ao latim e à sua modalidade “vulgar”, a comparatistas, línguas românicas e indo-europeias (do que sei ainda muito pouco). Reafirmando a tendência à volta, cheguei à história do livro desde as tabuinhas de madeira e cera até o processo editorial contemporâneo. E, numa dessas viagens de composição editorial, em 2012, me atrevi a “pintar” em cuneiforme, fenício, grego, etrusco, e mais nove dos alfabetos mais representativos.
Pelo meu espírito“Indiana Jones”, a Biblioteca Nacional teve grande responsabilidade. E tomo a oportunidade deste pequeno excerto para dizer toda a minha admiração pelo seu acervo, no qual tive a honra de estudar um “livro de cofre”, o mais antigo manuscrito grego da América Latina. E, por ele, longe fui, atrás da sua gênese, apenas para lhe atribuir uma data de nascimento.
Maria Olívia de Quadros Saraivaé autora da tese “O evangelho de Lucas no manuscrito grego da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (cód. 2437): edição e glossário” (UFMG, 2011).
O espírito “Indiana Jones”
Maria Olívia de Quadros Saraiva