Filho de português e de brasileira, com estudo formal apenas até a 5ª série do primário, o mecânico Joaquim da Costa Fonseca Filho tinha um sonho: voar. Mas não seria um voo qualquer – tinha que ser em um avião feito por ele. Nascido em 1909 em Pelotas, no interior do Rio Grande do Sul, o jovem gaúcho – que era autodidata – aprendeu mecânica e construção aeronáutica. Embora pouco conhecido, tornou-se um dos mais inventivos pioneiros na aviação civil brasileira.
Aos 17 anos fez sua primeira experiência em mecânica. Sua família inaugurava uma linha de transporte coletivo em automóveis no sul do estado. Na intenção de elevar os lucros da pequena frota de Ford modelo T, Joaquim fez uma intervenção: aumentou o chassi de um dos carros, tornando-o maior, mais lucrativo, e a grande sensação daqueles dias.
A novidade vinha acompanhada de outra atividade a que Joaquim Fonseca dedicava tempo e dinheiro: as corridas de automóveis. Após vencer várias competições, tornou-se conhecido como desportista, o que também era raro naquela pequena cidade, já que a maioria das pessoas se ocupava da agricultura e da pecuária. É desse período a construção da Magestoza, lancha com motor dianteiro, como dizia ser o correto. Nessa embarcação, Joaquim velejava pelas praias da Lagoa dos Patos, as mesmas que mais tarde sobrevoaria em dois aviões fabricados por ele próprio.
Na época do alistamento militar, ingressou na Escola de Aviação Militar, no Campo dos Afonsos, Rio de Janeiro, onde assistia a aulas de engenharia como aluno ouvinte, treinando na prática enquanto trabalhava nas oficinas da escola. De volta a Pelotas, criou a Oficina Mecânica Fonseca, e em 1935, durante uma viagem pelo sul do estado, conheceu Elda, com quem se casou e teve três filhos. Já familiarizado com a aviação, ele participou da fundação do Aeroclube de Pelotas, e logo obteve o brevê. Já era possível voar.
Dali até meados da década de 1940, Joaquim foi um dos três pilotos formados no Rio Grande do Sul. Ele alimentava um sonho que estava prestes a ser realizado: a criação da Sociedade Industrial de Aviões Pelotense. A iniciativa não demorou a ganhar força, e surgiram os primeiros esboços da máquina que seria o grande projeto do construtor.
Foi no porão de sua casa que Joaquim trabalhou sozinho durante os fins de semana, em segredo, por três anos, para construir seu primeiro avião. O aparelho tinha motor de automóvel, e no trem de pouso, pneus de motocicleta. Era feito de madeira e algodão envernizado. Em 1939, sua criação veio a público: os jornais locais estampavam manchetes sobre o primeiro voo do F.1, o avião de Joaquim. A notícia era veiculada junto com outra novidade de peso: os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial. Essa estreia durou vinte minutos, a uma altura de 300 metros, sobre o Aeroporto Municipal, a 100 quilômetros por hora. Por motivo de segurança e devido à simplicidade dos instrumentos, eram voos baixos e solitários, que margeavam a praia do Laranjal. Na época, a maioria dos pilotos não utilizava instrumentos, sendo guiados pelo que podiam enxergar.
Após mais de 30 horas fora do chão, Joaquim considerou esse aeroplano pesado demais e o desmanchou. Sabe-se que já havia no centro do país algumas fábricas de aviões, mas não há notícia sobre modelos que tenham voado com motores de automóveis no Brasil, ainda que fosse um sistema já utilizado na Europa. Esta é uma das facetas que tornam peculiar o trabalho de Joaquim Fonseca.
Quando ficou pronto o segundo aparelho, o F.2, Joaquim já integrava a diretoria do Aeroclube de Pelotas como diretor técnico. Em 1942, o então desconhecido construtor quis mostrar seu novo aparelho em Porto Alegre. Joaquim e o presidente do Aeroclube de Pelotas chegaram à capital do estado exibindo o invento – a bordo do F.2. O avião foi testado pela primeira vez com o objetivo de seguir até o Rio de Janeiro, onde deveria ser exibido para a Aeronáutica. A aeronave era destinada a treinamento e turismo, de construção mista de aço e madeira, com dois lugares e com duplo comando, media 10,5m de envergadura e 6,68m de comprimento, pesando 320 quilos, com autonomia de voo de cinco horas e velocidade de 135 quilômetros por hora, atingindo teto de 3.800 metros. Além dessas diferenças em relação ao primeiro protótipo, tinha motor aéreo, do tipo Franklin – o grande motor americano da época, feito para aviões –, e rodas de avião. Nada parecia mais promissor. Jornais de circulação nacional passaram a noticiar as vantagens do novo aparelho. Dizia-se que Salgado Filho (1888-1950), ministro da Aeronáutica e também rio-grandense, poderia aproveitar Joaquim no novo ministério.
O inventor finalmente voou com o F.2, em 1943, para o Rio de Janeiro, onde foi recebido pelo ministro Salgado Filho. No Campo dos Afonsos, o aparelho foi testado durante uma semana por técnicos da Aeronáutica, que o aprovaram. Joaquim voltou para casa, acompanhado da mulher, pilotando o recém-batizado Cidade de Pelotas. No ano seguinte, foi outra vez ao Rio com o F.2. Motivado pela boa repercussão dos acontecimentos, declarou à imprensa que os projetos e cálculos da futura aeronave, de qualidade técnica superior ao modelo aprovado, já tramitavam no Ministério da Aeronáutica. No entanto, ele recebeu uma resposta negativa: a homologação do novo protótipo, o F.3, foi negada e, para piorar, ele também não conseguiu obter a licença e o financiamento para a instalação da Sociedade Industrial de Aviões Pelotense.
O ministério alegou que os materiais usados eram de baixa qualidade. Consta que Joaquim teria respondido: “Índio não tem que construir avião. Tem que comprar!”.A turbulência causada pela Segunda Guerra e a política de desenvolvimento aeronáutico dependente do modelo norte-americano, adotada pelo governo Vargas, selaram o destino do aviador.
Apesar das adversidades, Joaquim continuou com seu trabalho autônomo, não acadêmico, solitário e inventivo. Ampliou a oficina mecânica que, ironicamente, passou a consertar também aviões. No início da década de 1950, após visitar fábricas de carros nos Estados Unidos, consolidou-se como industrial do ramo de autopeças. Abriu duas lojas em Porto Alegre e uma em Pelotas para vender sua produção. No Brasil do pós-guerra, respiravam-se finalmente os ares da democracia com a eleição de Juscelino Kubitschek (1902-1976). Mas aviões genuinamente brasileiros só apareceriam bem mais tarde, por volta de 1969, um ano depois da morte de Joaquim.
Sérgio Luiz Peres de Peresé professor da rede pública no Rio Grande do Sul e autor da dissertação “Uma história de invenções: memória, narrativa e biografia em Joaquim Fonseca” (UFPel, 2009).
Saiba Mais - Bibliografia
ANDRADE, Roberto Pereira de. História da construção aeronáutica no Brasil. Rio de Janeiro: Aquarius Editora, 1982.
VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas anônimos da história. Rio de Janeiro: Campus, 2002.
O faz-tudo voador
Sérgio Luiz Peres de Peres