O gênesis quiché

Milton Hernán Bentancor

  • Muito antes que o primeiro espanhol chegasse à América, os povos indígenas que habitavam estas terras já haviam acumulado uma grande produção intelectual. Ao longo dos séculos, haviam construído uma civilização organizada, com estrutura social complexa, além de suas tradições míticas para explicar a origem do ser humano e sua relação com o mundo. No caso dos povos maias-quichés, essas crenças estiveram guardadas em um livro sagrado por eles chamado Popol Vuh.

    Para chegar ao nosso conhecimento, mais de 500 anos depois, esse relato sobreviveu em muito aos povos que lhe deram origem e passou por várias mãos, inclusive pelas dos colonizadores espanhóis. Como será que os dominadores reagiram ao descobrir aquele material? Como podem ter preservado intacto um registro histórico e cultural de um povo que julgavam claramente inferior ao seu – ainda mais em se tratando de um texto religioso, que afrontava a crença cristã?

    De fato, não preservaram. Há vários indícios de que os espanhóis tenham alterado a versão original do Popol Vuh. Mas nem por isso ele é uma fonte menos interessante. Ao contrário: parte do fascínio de sua interpretação reside justamente nos contatos culturais. Não são poucos os pesquisadores que, aprofundando o tema, tornaram-se prisioneiros dos seus mistérios.

    A área dominada pelo império maia – epicentro cultural da América Central até os anos de 1500 – compreendeu os atuais Estados da península de Yucatán e do sul do México, além de Guatemala, Belize, parte de Honduras e El Salvador. Em toda a região é fácil encontrar vestígios de cidades, templos e monumentos tão antigos que nos levam a milhares de anos antes de Cristo. Livros pictográficos e hieróglifos incluem manuscritos indígenas escritos depois da conquista e trazem narrativas históricas de antigas tradições, relatos astronômicos e até poesia e peças de teatro.

    O mais significativo dos textos pré-colombianos é mesmo o Popol Vuh, livro das tradições históricas e mitológicas dos quichés, civilização anterior aos maias que existiu, aproximadamente, há 2.600 anos antes de Cristo e cujo centro do poder foi a cidade de Gumarcaah, atualmente na Guatemala, tomada pelos espanhóis em 1524.

    Como todos os povos antigos, os quichés estabeleceram um sistema de crenças em torno da criação do universo, da origem do homem e de sua situação perante o mundo e as divindades, ou seja, uma visão de mundo que sintetiza as ideias religiosas, os mitos, as lendas heroicas e as tradições históricas.

    Quando os espanhóis chegaram, os maias já tinham criado um sistema de escrita com base em símbolos gráficos que lhes permitiu coletar suas histórias em livros de imagens e hieróglifos (códices). Podemos supor que o Popol Vuh foi, originalmente, um livro desta natureza. Assim que impuseram sua dominação, os conquistadores espanhóis começaram uma política de eliminação cultural dos povos submetidos, em particular de suas crenças religiosas. Livros foram destruídos pelos invasores ou escondidos pelos indígenas, que também preservaram e transmitiram suas mensagens em forma oral.

    Em meados do século XVI, um índio letrado – supostamente um sacerdote – batizado como Diego Reynoso, teve a feliz ideia de transcrever o conteúdo do Popol Vuh na língua nativa, adotando os caracteres latinos e respeitando a fonética das palavras. Quase um século e meio depois, em 1688, o frade dominicano espanhol Francisco Ximénez (1666-1729) conheceu o manuscrito quiché do Popol Vuh, realizando sua transcrição e primeira tradução literal. Anos mais tarde, publicou uma segunda versão, mais depurada.

    A biblioteca do padre Ximénez passou em 1830 para a Universidade de San Carlos de Guatemala, onde o erudito austríaco Carl Scherzer se deparou, em 1854, com aquela edição do Popol Vuh. Em 1857, ele publicou em Viena uma nova tradução. Um ano mais tarde, o abade Charles E. Abbe Brasseur de Bourbourg publicou o texto quiché em francês, acompanhando o primeiro estudo sobre a obra.

    Em 1946, o erudito Adrian Recinos comparou e corrigiu versões do livro para produzir uma nova tradução, resultado de cuidadosa investigação e conhecimento profundo da língua original. Lançou então o documento que chegou até nós, contendo ideias cosmológicas e tradições deste povo, a história de suas origens e de seus reis até cerca de 1550.

    Após a introdução geral, o texto apresenta uma primeira parte sobre a criação do mundo, descrevendo o trabalho dos deuses em sua busca por um ser que os adorasse. Três tentativas teriam fracassado: com os animais, com homens de barro e com homens de madeira. Quando tudo parece indicar que a narrativa continuará explicando como se deu a criação, o Popol Vuh passa a contar histórias que evocam o sobrenatural e servem como base para as crenças míticas do povo. Algumas delas, como a saga da jovem Ixquic, têm uma proximidade suspeita com algumas crenças cristãs, com elementos como a árvore da vida, o fruto proibido e a concepção virginal. Fragmentos como este alimentam a ideia de que a obra foi “modificada” pelos religiosos espanhóis a fim de utilizá-la como um instrumento de catequização indígena. Fechando a primeira parte do livro, o relato retorna à origem do homem, interrompida depois dos erros divinos. A matéria-prima de sua criação seria o milho. Quando saiu das mãos dos deuses, o homem era perfeito e, por ciúme, os criadores o reduziram à condição atual.

    A segunda parte do Popol Vuh apresenta a história dos quichés: suas guerras contra outros povos da região – naturalmente vencidos – a origem da dinastia real e a sucessão genealógica dos reis até a conquista espanhola.

    Apesar de ser possível constatar a participação da cultura espanhola e cristã no relato de alguns episódios, também se notam ideias, concepções e abordagens diferentes daquelas que sustentam o cristianismo tradicional. O fragmento em que essas diferenças são mais evidentes é a narrativa dos esforços divinos para criar o ser que os adorará. Enquanto a Bíblia afirma que Deus criou os animais e depois o homem, o Popol Vuh sustenta que os animais foram uma primeira prova. A Bíblia apresenta a ideia de um homem criado a partir do barro da terra, enquanto os indígenas da América Central tomam este episódio como uma segunda tentativa fracassada das divindades. Em seguida o texto ameríndio apresenta um terceiro experimento divino, o homem de madeira. O objetivo desta terceira tentativa se aproxima do relato bíblico do dilúvio universal, só que em vez de usar água – como conta o Gênesis – os deuses do Popol Vuh utilizam resina. Finalmente, o homem é criado a partir do milho, produto de fundamental importância para os maias-quichés – a base de sua economia e de sua alimentação diária, razão de sua religiosidade.

    Ao longo do tempo, o foco da discussão sobre o livro tem sido exatamente este: o texto original era como o conhecemos hoje? Ou os espanhóis o modificaram? Se o fizeram, o que mudaram, o que acrescentaram, o que retiraram?

    Nos últimos anos surgiram interpretações que classificam o Popol Vuh como uma expressão hispânica e cristã de mitos e lendas indígenas. Embora a intervenção espanhola seja uma verdade incontestável a marcar os materiais que chegaram até os nossos dias, tampouco se pode ignorar a qualidade original desses escritos.

    Ao mesmo tempo em que os pontos de interferência cultural podem distorcer o verdadeiro significado e adulterar o pensamento original maia, eles não chegam a eliminar elementos autênticos – como as quatro sucessivas criações do homem (que remete até ao futuro conceito de evolução das espécies).

    Deixadas de lado as semelhanças e as diferenças, com posições a favor ou contra a Espanha, importante é constatar que apenas uma linguagem altamente evoluída, dona de um vocabulário e de uma sintaxe flexíveis, que se prestem à clareza e à elegância de estilo e à fluidez da narração, poderia servir como instrumento para compor esta obra. O Popol Vuh envolve a beleza do romance e a austeridade da história, pintando com as mais vivas cores a cultura e a mentalidade de um grande povo.

    Milton Hernán Bentancor é professor da Universidade de Caxias do Sul e autor da tese “La presencia-ausencia de Dios en la literatura uruguaya” (Universidad del Salvador, Buenos Aires, 2001) .

    Saiba mais

    El Popol Vuh. La creación (de Fuentes Film)
    El Popol Vuh(Popol Vuh. Fondo de Cultura Económica, México, 1947)

    Internet

    “Dios, dioses y diositos. Una lectura de la primera parte del Popol Vuh en comparación con los primeros capítulos del Génesis”. Artigo disponível em: http://www.uap.edu.ar/es/revistaenfoquesotono/)