O grande teatro de Deus

Heloisa Meireles Gesteira

  • Durante a primeira metade do século XVII, parte do território da América, hoje pertencente ao Brasil, foi ocupada pelos holandeses. Sob a proteção e o patrocínio do conde João Maurício de Nassau-Siegen e da Companhia das Índias Ocidentais, agência responsável pela administração das colônias neerlandesas no Atlântico (Westïndische Compagnie – WIC, que Nassau representava), artistas e estudiosos se associaram no projeto de reunir o máximo de conhecimentos sobre  o lugar, retratando artisticamente e classificando espécies da fauna e da flora, muitas delas ainda desconhecidas na Europa. Entre estes estava o jovem naturalista Jorge Marcgrave, co-autor, junto com Guilherme Piso, da Historia naturalis brasiliae [História natural do Brasil] – um monumento à natureza exuberante que aqui encontraram e procuraram registrar e compreender. 

    Marcgrave nasceu em 1610, em Liebstad, região da Westfalia, na atual Alemanha, e morreu cedo, aos 34 anos, em São Paulo de Luanda, na costa ocidental da África. Quando embarcou para o Novo Mundo, como contratado da WIC, sua missão já estava definida: coletar e reunir uma quantidade significativa de informações, se possível inéditas, sobre o Novo Mundo, a fim de incrementar o processo de inventariar a natureza, característico dos estudos de história natural que se produziam então na Europa. Ele participou de várias expedições na região conquistada pelos holandeses, que foram essenciais para os seus estudos e para a elaboração de mapas que ilustrariam o livro de Gaspar Barléus, História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil, de 1647.

    Embora tenha se fixado em Pernambuco, onde se situava o palácio de Nassau, recentemente foram localizadas no Arquivo da Casa Real em Haia, na Holanda, partes do diário de Marcgrave, onde o naturalista registrou a jornada que fez ao Ceará, entre julho e agosto de 1639. Embora esta viagem não tenha sido um empreendimento propriamente científico, mas sim uma expedição para capturar e escravizar índios tapuias, o naturalista aproveitou a oportunidade para realizar os seus estudos. Referências a regiões situadas fora de Recife aparecem também ao longo dos capítulos da História natural do Brasil, como, por exemplo, o que Marcgrave viu durante a expedição realizada ao rio São Francisco, conforme relatório enviado ao Conselho dos XIX – a cúpula dirigente da WIC.

  • Marcgrave realizou satisfatoriamente a tarefa para o qual foi contratado – obter o maior número de informações acerca do mundo natural americano e remetê-las para a Holanda –, e a publicação de um livro garantiria que os trabalhos do naturalista efetivamente enriqueceriam os conhecimentos da comunidade científica européia, especialmente sobre a região dominada pelos batavos, que compreendia as capitanias de Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande do Norte. Publicado em 1648, a História natural do Brasil se divide em duas partes. A primeira, atribuída a Guilherme Piso, que também fazia parte da equipe de Nassau, foi intitulada A medicina brasileira (Medicina brasiliensis). A segunda, História das coisas naturais do Brasil (Historiae rerum naturalium brasilium), reúne os trabalhos de Marcgrave.

    O naturalista dedicou o trabalho a seu benfeitor, o conde de Nassau, “em reconhecimento e ação de graças pelos muitos benefícios recebidos”. Mas, como Marcgrave já havia morrido quando o conde holandês retornou aos Países Baixos, a tarefa de editar seus desenhos e anotações coube a Johannes de Laet, que além de estudioso de botânica foi diretor da WIC. Acredita-se que parte dos escritos sobre astronomia tenha sido entregue a Jacob Golius, astrônomo da Universidade de Leiden. Este fato favorece a perspectiva de se encarar o trabalho do naturalista como parte de um empreendimento dirigido – no caso a ação da WIC –, de que muitos participavam em função de um objetivo comum.

    De fato, Laet assumiu toda a responsabilidade pela edição. Segundo ele, o material recebido das mãos do conde de Nassau estava desordenado. Mesmo em se tratando de descrições tão detalhadas, era preciso organizá-las de acordo com os padrões científicos da época. Apesar de reconhecer que Marcgrave já teria iniciado a classificação das espécies, Laet não deixa de chamar a atenção para o fato de que a ordem final foi dada por ele, sugerindo um sistema de co-autoria, embora procurasse respeitar ao máximo os originais. Em relação a estes, Laet assume uma posição de autoridade, fazendo as alterações que considerava necessárias e comparando as informações recolhidas na América com a literatura disponível.

  • Na apresentação de História natural do Brasil, embora registre que Marcgrave reuniu o material “por investigação própria e diligentíssima, e por observação acurada”, ele acrescenta que o naturalista o “descreveu e desenhou confusamente, conforme se lhe apresentavam nos vários lugares e tempos, ou lhe eram levadas pelos naturais”. Ao longo do texto, encontram-se inúmeros comentários do sábio editor, corrigindo ou acrescentando informações sobre as espécies descritas por Marcgrave, principalmente aquelas já conhecidas na Europa e disponíveis em outros livros que o próprio Laet cita no texto, como por exemplo, as narrativas de viagem de André de Thevet, Singularitez de la France Antartique (1558); e Jean de Léry, Voyage en Amerique (1578).    

    Laet revela ainda na apresentação que já tinha, antes de assumir a responsabilidade pela edição do livro, muita ligação com os trabalhos de Marcgrave, com quem colaborava enviando-lhe, da Holanda para a América portuguesa, plantas secas e desenhos de espécies descritas por outros naturalistas. A remessa dessas informações muitas vezes se relacionava ao interesse de estabelecer comparações entre a natureza da região dominada pelos batavos e a América espanhola. A propósito, Laet se refere com freqüência ao livro organizado e publicado pelo frei Francisco Ximénez, em 1615, a partir dos manuscritos de Francisco Hernández: Quatro libros de la naturaleza y virtudes de las plantas, y animales que están recevidos en uso de medicina en la Nueva España, y la methodo, y correcion, y  preparacion, que para administrallas se requiere.

    O livro que contém especificamente os trabalhos de Marcgrave divide-se em oito partes. As três primeiras são referentes às plantas, sendo estas subdividas de acordo com as seguintes categorias: ervas; plantas frutíferas; arbustos e árvores; a quarta parte refere-se aos peixes; a quinta, às aves; a sexta, aos quadrúpedes e serpentes; a sétima, aos insetos; a oitava parte trata da região e seus habitantes, sendo acrescida de um apêndice sobre os tapuias e os chilenos. Acreditamos que Laet respeitou os textos originais, conforme ele mesmo afirma na apresentação da obra, intervindo apenas quando julgava necessário e explicando cada interferência. Um dos critérios de classificação é a forma externa das plantas. Cada item corresponde a uma espécie que então passa a ser descrita por Jorge Marcgrave. O capítulo descreve, entre outros vegetais, o coqueiro:

  • “Inaia Guacuiba. Seu fruto é denominado pelos indígenas, Inajaguacu.(...) Palmeira Nucífera, chamada coqueiro (em português) e seu fruto coco. (...) Esta árvore tem caule reto, às vezes um pouco curvo, medindo de grossura quatro, cinco,  seis ou sete pés, e trinta, quarenta e até cinqüenta de altura. O caule é cinzento, como a nogueira, como que marcado transversalmente por vergões (...)”

    A tarefa de descrever começa pela nomenclatura. O nome dado pelos habitantes naturais da terra vem sempre em primeiro lugar. Em seguida, registra-se a denominação européia, na maior parte das vezes em português ou holandês. Uma vez nomeada a espécie, era necessário identificá-la, por semelhança morfológica, com alguma espécie já conhecida entre os europeus. Esse procedimento permitia que se incorporasse a nova informação à estrutura européia do conhecimento científico.

    Por outro lado, detectar as semelhanças entre os produtos da natureza reforçava também a idéia de uma origem comum para todos os seres vivos – tradição presente no texto bíblico. Marcgrave segue descrevendo cada parte da planta, tronco, folhagem, e, finalmente, seu fruto. Informa depois sobre os melhores lugares para cultivo da espécie, período de plantio e o tempo necessário para dar frutos. O naturalista continua sua tarefa dando atenção a outro aspecto fundamental: as formas de utilização da espécie pelo homem:

  • “Estando madura a noz, (...) é alvíssimo, repleto de um suco lácteo, do sabor das melhores avelãs.(...) enfim se encontra uma água; (...) Quando a noz está, porém, em meio- termo, isto é, quando a casca começa a amarelar, a cavidade se acha repleta de uma água agradabilíssima para se tomar (...); é doce, fria e clara.(...) logo, para se fazer uso da água, escolhe-se o tempo da imperfeita madureza; para se comer o núcleo, espera-se o tempo da perfeita madureza. (...) Do núcleo maduro se extrai um leite, com o qual se cozinha arroz para iguaria.”

    O naturalista assinala ainda as demais características do coqueiro, seu fruto e sementes. Os aspectos dos produtos que são postos em evidência nessa como em outras descrições de Marcgrave são os nomes, a forma, as utilidades e no caso das plantas, a maneira e o local para o cultivo. Num certo sentido, essa visão impulsionou a prática científica, pois estas anotações detalhadas enriqueciam, cada vez mais, o conhecimento das espécies naturais. Após a descrição de Marcgrave, seguem, em forma de notas, os acréscimos e comentários feitos por Laet. A leitura dessas notas ajuda a perceber, apesar das dificuldades dos transportes na época, a dinâmica da circulação das informações no seio da comunidade científica.

    Revela, por exemplo, o envio aos Países Baixos de produtos naturais colhidos na região da América portuguesa dominada pela WIC. Na Europa, esses produtos continuariam a ser observados, especialmente no jardim botânico da universidade de Leiden. Eram remetidos em forma de semente, planta seca, e há menção sobre a tentativa de transplante de vegetais: “Tendo recebido do nosso Brasil frutos inteiros e bem maduros, procurei delineá-los bem vivamente, (...). Empreguei diligência para que a planta fosse transportada para aqui, viva e íntegra, mas secou na viagem, por negligência dos marinheiros; contudo chegaram-me as folhas e flósculos secos; as folhas concordam com a descrição do nosso autor.”

  • Espécimes da fauna americana também eram enviados para a Europa: “Vi esse animal vivo (a preguiça) trazido do Brasil; bem parecia com a imagem somente não tinha o pescoço tão longo, como dei na descrição da América, pág. 618, com o nome de Uau. Da mesma maneira também fiz uma descrição com o nome de Hay, lib. XV, cap. 5, mas julgo conveniente avisar que a última figura vinda de Thevet não se acha conforme, embora Gesner, a tenha apresentado, porque o ventre não é tão pendente; as unhas são mais curvas; a cauda, mais curta. Acerca da indolência, a descrição está bastante conforme como pude observar num vivo; morreu, porém, depressa antes que pudesse fazer mais observações. Erradamente Gesner lhe dá o nome de Artopiteco, porque nada tem que ver com os macacos.”

    Como se vê, Laet esclarecia ou corrigia trabalhos realizados por outros escritores, ou mesmo confirmava o que fora anotado ou desenhado por Marcgrave. O processo exemplifica a intenção do editor em aperfeiçoar o conhecimento científico sobre a natureza americana – intenção compartilhada, aliás, por outros colonizadores. É lamentável que Marcgrave não tenha tido a oportunidade de confrontar o seu levantamento com os outros trabalhos, etapa da produção de conhecimento que só era possível na República. De qualquer maneira, como viajante naturalista, sua principal tarefa era estudar a natureza que o circundava, observar de perto o “teatro das coisas naturais do Brasil”.

    Sua trajetória acadêmica permite que se afirme que a cultura e a visão de mundo protestante exerceram, certamente, influências sobre a sua prática científica, pois o naturalista freqüentou universidades de regiões onde os credos reformados predominavam, entre as quais, Leiden. Quando Marcgrave representava uma espécie através da palavra escrita ou do desenho, nota-se o esforço de reproduzir o exemplar da forma mais fiel possível, a partir do que os seus olhos de naturalista podiam ver, como por exemplo, o interior das espécies que eram dissecadas. Não há lugar, em seu texto, para a fantasia, a superstição ou a magia, aspectos da vida que foram combatidos pelo calvinismo. Pode-se dizer que o maravilhoso do mundo natural se relacionava com a idéia de que Deus estaria presente nas suas criaturas, demonstrando, nelas próprias, a sua onipotência.

  • Ao longo da obra, as imagens das espécies complementavam os textos, sem que houvesse hierarquia entre os mesmos. Da mesma forma que a palavra escrita, a gravura aqui desempenha a função de descrever a espécie, reforçando, ainda mais, o papel do olhar, do testemunho, na produção de conhecimento. Os livros de história natural eram, pois, verdadeiras obras de arte. Reforçando esta concepção, era comum, à época, a utilização da metáfora do teatro para se referir ao mundo natural. Alguns títulos de história natural, ao longo dos séculos XVI e XVII, traziam em si a palavra teatro, como, por exemplo, a coleção organizada por volta de 1652 pelo médico Christian Mentzel a partir das pinturas de Albert Eckhout, Theatrum rerum naturalium brasiliae (Teatro das coisas naturais do Brasil).

    Caracterizado como teatro, o mundo natural transforma-se então num espetáculo criado por mão divina, cujos espectadores são os próprios homens. Esta metáfora reforça a dimensão que o olhar alcançou na produção de conhecimento durante o século XVII. No teatro, o homem aparece como a criatura mais importante; desta forma, os produtos eram descritos em função de sua utilidade para a vida humana, além de conterem, em si, os mistérios e desígnios de Deus.


    Heloisa Meireles Gesteira é pesquisadora adjunta do MAST/MCT e autora de “O Brasil dos Holandeses”, in: Paulo Roberto Pereira (org.) Brasiliana da Biblioteca Nacional: Guia das Fontes sobre o Brasil. Doutora em história com a tese O Teatro das Coisas Naturais: conhecimento e dominação neerlandesa no Brasil (1624/1654). Niterói: Universidade Federal Fluminense. Departamento de História, 2001.