O homem que sabia de tudo

Christian Fausto dos Santos e Rafael Campos

  • O mapa do século XVIII retrata as vilas e as minas de ouro da capitania do Mato Grosso, onde Barbosa de Sá viveu e escreveu sobre o cotidiano da América portuguesa. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)A efervescência científica, cultural, política e religiosa tomava conta da Europa. Entre grandes navegações e descobertas de novos continentes, um advogado sem formação regular concluía, em 1769, uma obra que hoje é considerada uma das mais significativas fontes documentais da história da América portuguesa. Em Dialogos Geographicos, Chronologicos, Politicos, e naturais, escriptos por Joseph Barbosa de Sáa Nesta Vila Reyal do Senhor Bom Jesus do Cuyaba - Anno de 1769, José Barbosa de Sá desenvolveu teorias sobre os mais diferentes temas. Da origem do homem na Terra – definindo dia, mês e ano em que ela foi criada – até a razão de a banana ter sido escolhida por Deus para ser a fruta sagrada.
     
    O manuscrito permite uma análise singular do cotidiano da colônia, pois foi produzido em seu interior: Barbosa de Sá estava radicado na Reyal do Senhor Bom Jesus do Cuyaba, a Cuiabá do século XVIII, na capitania de Mato Grosso. Ainda que possuísse uma biblioteca particular de relevo para o período, Sá não está enquadrado no grupo de eruditos da colônia, pois era um licenciado, ou seja, não tinha formação superior regular, mas era autorizado, pela Coroa, a exercer a profissão de advogado na Colônia. É bem provável que não tenha se formado pela Academia de Coimbra. O fato de não ter passado por uma educação formal valoriza ainda mais sua obra enquanto fonte de um saber não iniciado nos cânones acadêmicos daquele século. Pois, ainda assim, ele dividia com esses cânones os mesmos objetos de observação e discussão relativos ao Novo Mundo.
     
    Nos Dialogos Geographicos são descritos mais de mil recursos naturais e preciosas informações geográficas, etnológicas, econômicas, políticas, sociais e culturais acerca de um importante período da história do Brasil. O manuscrito também tem grande valor para os linguistas, por conter diversos vocábulos que hoje não constam dos léxicos da língua portuguesa. Entre os temas abordados, há uma minuciosa identificação de mais de 100 plantas – lista que vai das madeiras de lei até frutos, sementes, bagas, grãos e favas como a da baunilha, cujo forte potencial mercantil já era aventado pelo autor. 
     
    As fontes documentais que citam José Barbosa de Sá são escassas. Ele mesmo omitiu-se de fornecer dados exatos sobre sua origem nas anotações e nas crônicas que produziu. Não é possível estimar sua origem, mas somente a data em que fixou residência no Mato Grosso  a partir do fato de não ter sido licenciado em 1729 e de ele mesmo, em um de seus escritos, mencionar que, no ano anterior, examinou a custódia na igreja matriz cuiabana. Com essas informações, pode-se inferir que o advogado chegou a Cuiabá entre os anos de 1724 e 1742.
     
    Dedicando-se aos três reinos naturais, José Barbosa de Sá enxergava a natureza como dotada de perfeição, considerava o reino mineral um dos mais relevantes. Tratou dele a partir de critérios utilitaristas, mas não se restringindo às compreensões físicas do universo. O segmento espiritual e religioso era, para ele, elemento igualmente importante. Um caso exemplar desta ambivalência é a análise que faz do enxofre. Diferentemente dos outros minérios, este em específico teria sido criado para a “punição de delitos”, como um “instrumento da divina justiça”. Seu poder destrutivo estaria expresso tanto nos incêndios como nos vulcões que fulminavam das entranhas da terra ou nas ruínas causadas pelas próprias mãos humanas.
     
    No raciocínio utilitarista, Sá exaltava o ferro como o mineral mais proveitoso aos usos dos seres humanos. Na época, o ouro era o minério mais desejado na América, mas o autor defendeu fortemente o contrário. Muito utilizado na colônia, o ferro era essencial para a extração de outros minérios. Era ele, portanto, que compunha o topo dos metais mais importantes, só então seguido pelo ouro. 
     
    Do ponto de vista geográfico e político, descreveu detalhadamente as questões relacionadas aos limites fronteiriços entre as Américas portuguesa e espanhola.  E apresentou dados sobre atividades de artesanato hoje perdidas no Brasil, como a confecção de objetos a partir de pó de quartzo fundido e bonecos ocos de borracha – uma importante fonte para os estudos etno-históricos e patrimoniais.
     
    Para o autor, havia uma questão primordial a ser desvendada em suas observações: como os animais encontrados no Novo Mundo poderiam diferir daqueles que viviam no Velho Continente? De quem aquelas criaturas tão diferentes descendiam? Ele até aceitava que algumas espécies (e ele usa este termo) existentes na Europa não habitassem o continente recém-descoberto. Mas o contrário era inadmissível em sua visão: a Bíblia não podia estar errada. Admitir que os animais encontrados no Novo Mundo eram inexistentes na Europa seria assumir um erro do Gênese, pois os animais da América eram os mesmos salvos na Arca de Noé. O cerne da explicação para a diversidade das espécies, então, estaria em outros fatores, ele concluiu, e seriam razões de ordem externa: com o fim do dilúvio e o ancoramento da Arca no monte Ararat, os bichos teriam se dispersado. Sá procurava demonstrar que os animais não foram transportados até o Novo Mundo, e que a ocupação deles na América seria consequência desse efeito de dispersão, a partir do centro de origem – o monte Ararat. Mais ou menos o mesmo que ocorre quando uma planta lança seus ramos e se espalha por outras paragens. 
     
    Ao tentar classificar os cogumelos, o autor conclui coisas curiosas. Uma é que eles tinham a possibilidade de ser venenosos ou não. Outra, que não poderiam pertencer ao reino das plantas, mas tampouco eram animais. Esta interpretação diferia, e muito, das leituras consideradas mais modernas no século XVIII. O que significa que este advogado licenciado, de certo modo, precedeu muitos filósofos naturais na classificação dos fungos. No que se refere aos interesses botânicos, o pensamento de José Barbosa de Sá estava atrelado aos conhecimentos gerais verificados naquele período, não só por seu sistema classificatório dos vegetais, mas também pela forte preocupação em torná-los úteis. Um exemplo disso era o mangue que, segundo o autor, oferecia madeira excelente para se fabricarem casas, e cuja casca ainda serviria para curtir couro e fabricar tinta vermelha e preta.
     
    Sá estabeleceu uma catalogação do reino vegetal, pondo em relevo as utilidades das espécies e suas potencialidades, atentando para os produtos luso-americanos como um todo. Sua sistemática enquadrava as plantas em quatro principais características observáveis: as madeiras/ plantas/ paus, flores, frutos/ e os aromas. Eram classes gerais que, consequentemente, reagrupavam diferentes tipos, como os paus que serviam para tinturaria e aqueles úteis nas boticas. Seu sistema não previa a construção de uma classificação botânica, mas sim o estabelecimento de ordenações a partir de critérios de uso, de forma bastante semelhante aos primeiros trabalhos produzidos pelo “estrangeirado” (como eram chamados os portugueses formados em outros países) José Correia da Serra (1751-1823), um dos fundadores da Academia das Ciências de Lisboa.
     
    As concepções botânicas de José Barbosa de Sá, embora distantes do contexto acadêmico europeu, estavam atentas às discussões marcantes do período. Ele representava a singularidade e a importância de uma atividade intelectual na colônia, alheia aos letrados e nobres. E que não dependia das investigações microscópicas que tomavam a Europa e suas sociedades de ciências. Sá e os diversos curiosos anônimos que se preocuparam em conferir e acompanhar o desenvolvimento vegetal tinham outras necessidades e interesses, diferentes daqueles da elite intelectual europeia. 
     
    A obra do advogado estudioso possibilita olhar por outras lentes para uma realidade que não era exclusiva da Europa, mas tampouco isolada em uma sociedade agrária. Desde aquele período, já se fazia ciência – e história – para além dos muros da academia. 
     
    Christian Fausto dos Santos é professor da Universidade Estadual de Maringá e coordenador do Laboratório de História, Ciências e Ambiente da Universidade Estadual de Maringá. Rafael Campos é pesquisador do Centro de História de Além-Mar da Universidade Nova de Lisboa (Portugal). Ambos são coautores de Fauna e flora do Brasil (especialmente do Mato Grosso) segundo Joseph Barbosa de Saá (1769), (FFLCH/USP, 2013). 
     
    Saiba Mais
     
    CARNEIRO, Henrique. Filtros, Mezinhas e Triagas: as drogas do Novo Mundo. São Paulo: Xamã, 1994.
    COSTA, Maria de Fátima. História de um país inexistente: o pantanal entre os séculos XVI e XVIIII. São Paulo: Estação Liberdade / Kosmos, 1999.
    EDLER, Flávio Coelho. Boticas & Pharmacias: uma história ilustrada da farmácia no Brasil. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2006.
    GERBI, A. O Novo Mundo: História de uma Polêmica (1750-1900). São Paulo: Companhia das Letras, 1996.