“Em relação a mim, posso dizer que minha pátria é a literatura brasileira”. Com mais de cem livros no currículo, Curt Meyer-Clason tornou-se célebre ao traduzir para o alemão os maiores autores brasileiros e hispano-americanos – Jorge Amado, João Guimarães Rosa, Pablo Neruda, Gabriel García Márquez, entre outros. Esta é a história conhecida. Outra parte da biografia do tradutor, porém, foi silenciada: antes de ganhar fama nas letras, ele atuava como espião para os nazistas.
O alemão chegou ao Brasil em 1936. Veio como comerciante de algodão, e provavelmente começou suas atividades de espionagem em 1939. Foi só quando retornou ao país natal, em 1955, que iniciou seu trabalho como tradutor, alcançando grande prestígio ao verter para o alemão o romance Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Depois se mudou para Lisboa, onde foi diretor do Instituto Goethe entre 1969 e 1976. Eram os últimos anos da ditadura de Salazar, derrubada pela Revolução dos Cravos (1974), e Meyer-Clason desenvolveu corajosos projetos comprometidos com o retorno à democracia.Este fascinante personagem viveu até os 101 anos e, quando morreu em Munique, em 2012, foi lembrado apenas como democrata e grande tradutor. Sobre a atividade de espião surgiram algumas menções, logo questionadas. Uma das primeiras provas desse passado esquecido foi descoberta em 1996, quando um grupo de historiadores – sob a direção de Maria Luiza Tucci Carneiro, especialista em nacional-socialismo – pesquisava no arquivo do Departamento de Ordem Política e Social (DEOPS), em São Paulo. Ali foi encontrada uma ata de confissão do alemão. “Sem margem de dúvida, Curt Meyer-Clason agiu como espião no Brasil, a serviço da sua pátria”, afirma o informe policial. Ele foi preso em Porto Alegre, no verão de 1942, e durante o interrogatório declarou ter iniciado suas atividades no Recife, em 1939, ainda antes do início da guerra. Disse também que começou agindo por conta própria e com falsa identidade inglesa, fornecendo à embaixada alemã informações sobre a localização de navios dos Aliados. No ano seguinte, teria sido recrutado oficialmente como espião, passando a elaborar listas negras de empresas contrárias ao nacional-socialismo. Seu contato em São Paulo, Eduard Arnold – um espião alemão – também foi chamado a depor e confirmou a atividade do suspeito.Amplos círculos de espionagem alemã foram desencadeados no Brasil e na América Latina. A tarefa dos agentes secretos consistia, prioritariamente, em revelar aos submarinos de seu país os movimentos de navios dos Aliados no litoral sul-americano. O monitoramento foi bem sucedido: resultou, por exemplo, em cinco navios brasileiros afundados por alemães, deixando um saldo de mais de 600 mortes – o que conduziu à declaração de guerra por parte do Brasil, em agosto de 1942. No final desse mesmo ano, o governo brasileiro deu início aos processos relacionados à espionagem, conduzidos pelo Tribunal de Segurança Nacional. As punições previstas variavam entre 20 e 30 anos de prisão, e poderiam chegar à pena de morte. Considerado culpado por espionar para os nazistas, Meyer-Clason foi sentenciado a 20 anos de cadeia e cumpriu parte da pena na colônia de detentos Cândido Mendes, localizada na Ilha Grande, Rio de Janeiro.Segundo informes da Cruz Vermelha, as condições de vida nos campos de internação eram razoavelmente toleráveis e, em geral, o relacionamento entre a direção e os detentos era bom. Graças a isto, Meyer-Clason acabou aprendendo atrás das grades, e de maneira autodidata, o ofício de tradutor. Saiu-se bem: anos depois, seu trabalho seria reconhecido não como simples versões em alemão de grandes obras, mas como verdadeiras recriações. Particularmente brilhantes são suas traduções dos romances Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado, e Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, da autobiografia de Pablo Neruda Confesso que vivi, e de poemas de Octavio Paz.Tal fama, porém, só viria mais tarde. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, em meados de 1945, a maior parte dos prisioneiros de guerra foi liberada. Não se sabe ao certo quando e de que maneira Meyer-Clason recuperou sua liberdade. Sua mãe, Emmy Meyer-Clason, chegou a reivindicar, em setembro de 1944, que as autoridades brasileiras intercedessem pelo filho. Conservadas no Ministério de Relações Exteriores alemão, as atas dos detentos civis alemães incluem essas correspondências – que confirmam a condenação e a pena cumprida pelo alemão no presídio de Ilha Grande. Demonstram, ainda, que Emmy atribuía ao filho um profundo conhecimento do cenário brasileiro: devido ao seu trabalho no comércio do algodão, ele tinha acesso a informações sobre a movimentação dos navios e sobre empresas de Porto Alegre. Foi com este argumento que a senhora Emmy procurou mobilizar o Ministério de Relações Exteriores para que agisse em defesa da libertação de Meyer-Clason, que poderia “fornecer diversas informações”, de modo a prestar bons serviços à Alemanha.
As cartas de Emmy são parte de um conjunto maior de documentos sobre o assunto encontrados na Alemanha. Eles ajudam a afastar a hipótese de que a confissão de espionagem tenha sido obtida sob tortura ou mediante promessas de uma rápida liberação. De fato, em um relatório de novembro de 1942, um companheiro de prisão, identificado como senhor Agde, afirma que o colega havia, sim, sido torturado enquanto esteve detido. Por outro lado, em 1940, o embaixador alemão no Rio de Janeiro, dr. Kurt Prüfer, enviou telegrama ao Ministério de Relações Exteriores em Berlim solicitando a retirada de um agente secreto que “de maneira irresponsável e leviana passou informações sobre as suas tarefas a pessoas pouco confiáveis”. Referia-se ao espião Erich Immers, que havia mandado instruções a Meyer-Clason em forma de microdot – uma técnica na qual os textos são reduzidos ao tamanho de um ponto, para serem escondidos em cartas. Meyer-Clason levou o material para ser ampliado por um especialista em instrumentos ópticos que era leal ao Terceiro Reich. O rapaz informou imediatamente à embaixada alemã no Rio de Janeiro sobre o assunto suspeito. O uso do microdot por Meyer-Clason também foi mencionado pelo espião nazista Albrecht Gustav Engels.Em março de 1942, o sistema de defesa alemã no exterior confirmou, por meio de um documento bastante difundido, que após a sua detenção Meyer-Clason teria denunciado os espiões Leo (provavelmente Erich Immers) e Eduard Arnold. Em resumo, a própria contraespionagem no exterior incluiu o futuro tradutor como membro e situou-o no âmbito da espionagem no Brasil.
Documentos que comprovam sua atuação antes de se dedicar à tradução não faltam, portanto. Mesmo assim, jornalistas e políticos continuam tratando esta parte da história como uma zona turva ou esquecida. Em janeiro de 2012, o presidente do Instituto Goethe referiu-se a Mayer-Clason como um “ícone no melhor sentido”, um personagem que “nos trouxe a literatura sul-americana e que desempenhou um importante papel no Instituto Goethe de Lisboa durante a transição da ditadura militar para a democracia”, sem mencionar o passado nazista. Igualmente omissos têm sido os grandes jornais alemães que, ainda em 2011, quando se comemorou o 100º aniversário do famoso tradutor, recusaram-se a publicar artigos que chamavam a atenção sobre as atividades que o homenageado desenvolveu no Brasil como agente secreto do Reich.Em artigo que escreveu em 1968 sobre o ofício que lhe traria reconhecimento, Meyer-Clason tece comentários em “Sobre o intraduzível”. O título do texto, que remete a algo “difícil de explicar”, pode ser aplicado à sua própria trajetória.Dieter Strauss é escritor e foi diretor do Instituto Goethe em São Paulo, Santiago do Chile, Paris e Rabat/Casablanca.Saiba maisCARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Brasil, um refúgio nos trópicos. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 1996.PERAZZO, Priscila Ferreira. O perigo alemão e a repressão policial no Estado Novo. São Paulo: Editora do Arquivo do Estado de São Paulo, 1999.
O intraduzível
Dieter Strauss (Tradução: Pablo Diener)