Tomado porforte exaltaçãomístico-religiosa, um grupo de homens e mulheres se envolve em um enredo de cenastrágicas. Espanca pessoas “possuídas pelo demônio”, mata cães egatos,sacrificaquatro crianças e só é contido pela chegada de soldados enviados ao local para prender os “fanáticos”, executando dois deles.
Este episódio se assemelha a outras mobilizações messiânico-milenaristas ocorridas no campo e nas cidades, envolvendo remanescentes indígenas e povos nativos escravizados ou submetidos aojugo colonial ao longo dosséculos, nasmais diversas regiõesculturais do planeta.
“A aparição do demônio no Catulé”, episódio ocorrido no interior de Minas Gerais em abril de 1955, teve como característica peculiar o fato de originar-se de uma religião pentecostal. Seus protagonistas, convertidos daIgreja Adventista da Promessa, eram moradores de uma gleba de terras da fazendaSão João da Mata, no município de Malacacheta, na região do Alto Jequitinhonha.
Naquele ano, a população do município girava em torno dos 35 mil habitantes, em sua maioria dedicados às atividades agropecuárias. Algumas fazendas vinham recebendo famílias camponesas da região, que perambulavam à procura de terras em que pudessem se estabelecer e trabalhar sob o regime de parceria, morando “de favor” na propriedade de um grande fazendeiro. Todas haviam sido expulsas do território que antigamente ocupavam na zona do rio Urupuca, área que se valorizara com a abertura da estrada Rio-Bahia, despertando a cobiça de grileiros e fazendeiros.
Dez dessas famílias de lavradores, comvínculos de parentesco, amizade e compadrio, habitavam a clareira chamada Catulé. Eram todos analfabetos, exceto um deles, o lavrador Onofre, de 27 anos, solteiro. Ele tinha tentado a sorte na região paulista de Presidente Prudente, onde se convertera ao Adventismo da Promessa. De volta ao Catulé, deu início ao trabalho missionário. Joaquim, de 26 anos, também solteiro, chegou pouco depois. Os dois tornaram-se líderes religiosos locais, pregando a vinda próxima de Cristo aos trabalhadores-parceiros e também em agrupamentos vizinhos. Como Onofre era ali o único alfabetizado, cabia a ele ler e explicar passagens da Bíblia. Sob a liderança dos dois pregadores, o núcleo de “crentes” passou a ter intensa vida religiosa.
Diferentemente do Adventismo que surgiu nos Estados Unidos entre os séculos XVIII e XIX, a corrente brasileira dos Adventistas da Promessa acredita numa iminente segunda vinda de Cristo, quando então teria início o “Milênio” e com ele a ressurreição dos mortos. Ao fim desses mil anos, viriam o julgamento e a destruição dos infiéis e de Satanás. Para os Adventistas da Promessa, em razão de suas peculiaridades pentecostais, é indiscutível a presença do demônio e sua nefasta interferência no mundo dos homens.
O agrupamento do Catulé dividia-se em dois subgrupos: o dos casados com filhos e o dos solteiros sem filhos. A família de Joaquim tinha dificuldades de integração não apenas por não ser originária do antigo bairro rural do Urupuca, mas também porque era constituída por jovens solteiros. E foram justamente os moradores solteiros e sem filhos os protagonistas mais ativos da Semana Santa de 1955. Além da ação dos líderes religiosos Joaquim e Onofre, duas moradoras passaram a desempenhar o papel de profetisas. Aparentemente, completavam assim a sua inserção na irmandade dos adventistas, que já vinha anulando os antigos laços e as obrigações de compadrio vinculadas ao catolicismo.
A comunidade entrou em conflito por conta de desentendimentos com o antigo líder do agrupamento, Manoel – que os conduzira até a fazenda São João da Mata, intermediando junto ao seu proprietário a condição de parceiros. Então com 64 anos, Manoel via sua liderança ofuscada pelos jovens Joaquim e Onofre. As tensões emergem na terça-feira, 5 de abril de 1955, momento em que se revela a “presença” de Satanás no grupo. A partir desse episódio, há uma sucessão de acusações, agressões, assassinatos, comportamentos sexuais insólitos e outras manifestações nunca antes registradas na localidade.
As “profetisas” se encarregaram de apontar pessoas e objetos que estariam possuídos pelo demônio, enquanto anunciavam o iminente fim do mundo e a ascensão dos crentes. Homens, mulheres e crianças passaram a ser espancados por Joaquim para “expulsar Satanás”, cuja “presença” os ameaçava e denunciava um estado de impureza, impedindo-os de ascender aos céus. Os apontados como possuídos pelo demônio foram agredidos porque não se haviam convertido ao Adventismo da Promessa, porque eram “casados no padre” ou porque desrespeitavam os rígidos preceitos puritanos – não beber, não fumar, não dançar, não cantar músicas profanas etc. – introduzidos pela nova crença. Ou, ainda, por serem filhos do velho Manoel, seus afilhados ou aparentados.
O demônio vitimava crianças e adultos, “passava” de uma pessoa a outra, invadia objetos e animais. Os “possuídos”, mesmo depois de mortos, não deviam ser tocados, sob pena de contágio. Por isso, os adventistas julgaram necessário sacrificar os cachorros e os gatos que se aproximaram do corpo da menina Nelcina, que morreu na quinta-feira, dia 7 de abril, devido aos espancamentos sofridos. Os corpos eram amarrados com embira e arrastados pelos pés, para evitar novas contaminações. No sábado, dia 9, foram mortos os meninos Pedro, João e Josué. Os espancamentos e a cremação do cadáver de Nelcina e dos animais mortos traduzem rituais de purificação. Mais tarde, Joaquim ordenou que fossem queimados até mesmo roupas e utensílios domésticos variados porque “fediam a Satanás”.
No mesmo dia, Joaquim afirmou que Jesus desceria para conduzi-los à Cidade Celeste de Canaã. Como quase todos acreditavam nas palavras do “Jesus do Catulé”, ele e seus seguidores começaram a saltar, preparando-se para a ascensão. Com um lenço, Joaquim “varria” os pecados dos que estavam ao seu lado e exigia que se desfizessem dos objetos mundanos. Parece ter havido, logo depois, uma cena de confissão geral dos pecados.
Os soldados chegaram no dia seguinte, domingo, 10 de abril. Dirigiram-se à Grota do Catulé e lá encontraram Joaquim e Onofre à frente de um número não determinado de homens, mulheres e crianças, todos nus e em “delírio coletivo”, banhando-se em uma cacimba lamacenta para se livrarem dos pecados e ascenderem à Cidade Celeste de Canaã. Joaquim teria então afirmado que ninguém precisava ter vergonha, porque já estavam no Jardim do Éden.
O “Jesus do Catulé” lavava um dos moradores quando os soldados chegaram e deram voz de prisão a todos. Ele e Onofre, nus, foram ao encontro dos guardas dizendo: “Nós somos de paz”. Os agentes da lei, porém, abriram fogo. Onofre caiu morto, Joaquim ficou gravemente ferido. Os demais vestiram-se apressadamente. À noite houve ainda uma frustrada tentativa de atirar à fogueira uma criança tida como possuída pelo demônio.
Joaquim pediu para morrer com a palavra de Deus na boca. Alguém arrancou duas páginas da Bíblia e colocou uma na boca de Joaquim e a outra na de Onofre, já morto. Joaquim pediu um pouco de água, engoliu a página e em seguida morreu. Os que por lá estavam disseram: “Não está morto, está dormindo”.
Os acontecimentos havidos no Catulé, do modo como foram divulgados pela imprensa sensacionalista da época, estigmatizaram por muitos anos a população do município de Malacacheta, tachada de bárbara e sanguinária. Por falta de provas, os soldados cujos disparos ceifaram as vidas de Joaquim e de Onofre foram absolvidos. Igualmente por falta de provas, foram postos em liberdade três dos protagonistas do caso, incluindo as duas “profetisas”. Um dos participantes, conhecido como João Caolho, ficou detido preventivamente e sem julgamento de 1955 a 1964. Tido como mentalmente insano, foi transferido para um manicômio judiciário como medida de segurança. Contudo, beneficiou-se do regime de liberdade vigiada até 1970, quando obteve, por fim, a liberdade definitiva.
O agrupamento do Catulé, que já se mostrava instável, dissolveu-se. É desconhecido o paradeiro desses parceiros. O mais provável é que tenham percorrido o caminho da completa proletarização, ou seja, convertendo-se inteiramente em assalariados rurais, o que já se anunciava nos anos de 1950.
Renato da Silva Queirozé professor da Universidade de São Paulo e autor de A caminho do Paraíso: o surto messiânico-milenarista do Catulé (USP, 1995).
O fim do mundo em Teresina
No mês de outubro de 2012, a imprensa noticiou que em Teresina, capital do Piauí, Luís Pereira, um ex-zelador que ficou conhecido como “Profeta”, anunciou que o mundo acabaria no dia 12 daquele mês. Mais de 300 pessoas estavam com ele reunidas em uma casa, aguardando o proclamado fim dos tempos, o que mobilizou forças policiais e judiciárias para de lá retirar crianças e adolescentes. O “Profeta” teria então se escondido, dispersando assim a maior parte de seus adeptos. Pesavam contra ele as acusações de promover casamentos entre menores e obrigar seus seguidores a deixarem empregos e se desfazerem de seus bens para que pudessem ser arrebatados no dia do Juízo Final.
Saiba mais - Bibliografia
ANDRADE, Jorge. Vereda da Salvação. Peça em dois atos. São Paulo: Brasiliense, 1965.PEREIRA DE QUEIROZ, Maria Isaura et al. Estudos de Sociologia e História. São Paulo: INEP-Anhembi, 1957.
REVISTA USP. “Messianismos e milenarismos no Brasil”. Coordenadoria de Comunicação Social, USP, n. 82, jun.-jul.ago. 2009.
Filme
Vereda da Salvação(Anselmo Duarte, 1965)
O Jesus de Catulé
Renato da Silva Queiroz