O lápis fatídico do imperador

Ana Lúcia Merege

  • Na charge da Revista Illustrada, o imperador aparece sonolento durante a distribuição de prêmios da Academia Imperial de Belas Artes. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)Nos livros didáticos, geralmente ele aparece como o soberano idealista, dedicado ao progresso do Brasil. Já alguns biógrafos o descrevem por meio de adjetivos como distraído e introvertido. Qual era, afinal, a personalidade de D. Pedro II? Dois documentos, integrantes do mesmo conjunto, podem levar a uma interessante reflexão sobre o imperador. Ambos estão na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional, em meio a uma coleção de arquivos assinados por membros da família imperial brasileira, que inclui desde protestos de amor trocados entre D. Pedro I e a marquesa de Santos até exercícios escolares de D. Pedro Augusto, neto de D. Pedro II, passando por cartas-patente, ordens régias e ofícios ministeriais. Os documentos foram reunidos em um álbum pelo comendador João Ferreira de Andrade Leite e adquiridos pela instituição em 1906. 
     
    O primeiro é chamado de Desenhos feitos a lápis, pois é disso que se trata: uma folha de papel semelhante à de um “risque-rabisque” dos tempos atuais. Sua inclusão no álbum é explicada por uma nota manuscrita, possivelmente de Andrade Leite: “Estes gatafunhos são feitos pelo Imperador quando em despacho de ministros, com o célebre lápis fatídico”. O início desta frase remete ao tédio que o soberano costumava demonstrar em reuniões de Estado. Existem vários testemunhos desse comportamento, entre eles o de José de Alencar. Os dois tinham sérias desavenças, iniciadas em 1856 com a publicação de A Confederação dos Tamoios, de Gonçalves de Magalhães, amigo do imperador. As críticas de Alencar à obra deram início a uma longa disputa, travada através dos jornais, nos quais D. Pedro II usava o pseudônimo “Amigo do Poeta”. Muitos anos mais tarde, o escritor se vingou pela literatura. Seu personagem Sebastião de Castro Caldas, do livro A Guerra dos Mascates (1874), emula D. Pedro II em vários de seus defeitos, “tais como (...) os rabiscos nas fastidiosas reuniões do Gabinete e seu bordão ‘Já sei, já sei’”.
     
    “Reflexão acerca da arrogância” é uma anotação apressada que D. Pedro II fez sobre os conselheiros que só desejavam demonstrar eloquência e retórica, segundo Andrade Leite. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)Se os “gatafunhos” podem ser considerados uma prova do desinteresse do imperador pelas questões ministeriais, o segundo documento, integrante do mesmo conjunto guardado na Biblioteca Nacional, serve em parte para redimi-lo. Trata-se da Reflexão acerca da arrogância: uma anotação apressada feita com a letra de D. Pedro II, acompanhada por uma explicação de Andrade Leite. Segundo o comendador, ao se sentir aborrecido “pelos longos discursos de seus Conselheiros, que só desejavam mostrar eloquência e retórica”, Sua Majestade escrevia ao mestre e amigo marquês de Sapucaí “para lhe fazer sentir quanto o contrariava tanta erudição”.
     
    Queixava-se o monarca: “Todos querem ostentar conhecimentos, e por isso se leva uma manhã sem maior proveito. Parece-me que tirei 24 manhãs ao ano de trabalho, querendo empregá-las com utilidade para o meu Império. Logo previ, quando se falou do Conselho de Estado, que pouco farão 12 homens de pretensão, e de língua, que não pode estar imóvel. Tanta é a instrução, que transborda e encende de tal modo que não se pode tomar fé”.
     
    A reflexão parece indicar que o imperador não era indiferente às questões de Governo. Exasperava-se, porém, com discursos vazios, ainda mais quando vinham de homens a quem ele próprio concedera poder. Este ponto é reiterado quando, voltando à frase que acompanha os rabiscos, encontra-se uma menção ao “lápis fatídico”, um objeto já considerado emblemático ao se retratar D. Pedro II. Com ele, o monarca fazia anotações sobre as pessoas que detinham cargos públicos ou alguma espécie de honraria. Frequentemente o fazia ao longo de suas viagens, valendo-se, para isso, de um caderninho de capa preta. Este é também bastante conhecido, mas não merece tanta atenção, nem parece ter desencadeado tanta inquietação entre os grandes do Império quanto o lápis. 
     

    José de Alencar teve desavenças com o imperador e chegou a escrever em sua obra A Guerra dos Mascates que D. Pedro II fazia rabiscos, tais como os desenhos a lápis acima, durante as reuniões de seu gabinete. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)

    Na crônica “O lápis fatídico”, publicada no periódico O Cruzeiro em 1959, Gustavo Barroso menciona listas de magistrados, políticos, militares e funcionários graduados. O imperador sublinhava os nomes dos que mereciam distinção – os empreendedores, os que se portavam com discrição e comedimento, os que tratavam seus empregados com justiça e libertavam seus escravos – mas também os “daqueles que praticavam desonestidades de quaisquer naturezas”, a fim de que não conseguissem promoções e benefícios. Uma vez apontados pelo imperador, os delitos não prescreviam: Barroso se refere a dois casos, o de um juiz e o de um militar de alta patente, que foram impedidos de progredir na carreira devido a atos julgados indignos por D. Pedro II três décadas antes. Um senso de justiça inflexível, mas que muitos consideravam louvável. Segundo Ruy Barbosa, em discurso proferido em 1914, esta era a verdadeira função do poder moderador: uma “sentinela vigilante (...) que, acesa no alto, guardava a redondeza, como um farol que não se apaga, em proveito da honra, da justiça e da moralidade”.
     
    De certa forma, essa atitude de D. Pedro II substitui a ideia do monarca entediado por outra, a de alguém atento, disposto a intervir em casos de corrupção ou desleixo. No entanto, o mais provável é que, descontando os exageros, ambas as afirmações sejam verdadeiras: o imperador se aborrecia com facilidade, talvez se interessasse mais por artes e ciências do que pelos discursos dos ministros. Ainda assim, preocupava-se com os rumos do país e esperava que os dignitários agissem com honestidade. 
     
    Neste ponto era um governante exemplar, como conclui Gustavo Barroso ao encerrar sua crônica: “A 15 de novembro de 1889 a ponta desse lápis foi quebrada, nenhum outro jamais apareceu no decurso das administrações republicanas. Isso justifica o fato de ansiar o povo brasileiro, na falta dele, pelo aparecimento, ao menos, dum sucedâneo”.