O maestro

Marcello Scarrone

  • Retrato do padre José Maurício Nunes Garcia,  feito pelo seu filho Dr.José Maurício Nunes Garcia Jr. (1808-1884). Datado de meados séc. XIXDesembarcado no cais do Largo do Paço, o príncipe regente D. João dirigiu-se logo para a Sé do Rio de Janeiro, onde foi ouvir músicas tocadas e cantadas em sua homenagem pelo conjunto orquestral e o coral da igreja. O regente dos músicos e autor da maioria das composições apresentadas naquele 8 de março de 1808 era um padre mulato, de 40 anos, filho de um casal de ex-escravos que haviam sido alforriados por seus donos.

    José Mauricio Nunes Garcia nasceu no Rio de Janeiro em 1767. Revelando dotes musicais singulares desde jovem, a ponto de compor, já aos 16 anos, sua primeira obra (a antífona “Tota Pulchra es, Maria”), a vida sacerdotal se tornou uma forma de alimentar e dar visibilidade a seus talentos, fugindo da situação de pobreza de sua família. Ordenado em 1792, no começo viveu de aulas de piano, até ser nomeado professor público de música. Com um salário garantido, pôde abrir um curso de música gratuito em sua casa na rua das Belas Noites (hoje rua das Marrecas), por onde transitaram nomes como Francisco Manuel da Silva, futuro autor do Hino Nacional.

    Mestre-de-capela da Sé a partir de 1793, José Mauricio compôs dezenas de obras, quase todas de cunho religioso. Missas, antífonas, salmos, ofícios para defuntos: sua produção se inspirava na obra de compositores europeus, como Haydn e Mozart, que conhecia pelas partituras encontradas com os livreiros da cidade, mas incorporava sugestões da musicalidade secular e tropical. A presença da corte e a adoração do príncipe D. João por música lhe proporcionaram anos de intensa criação: somente em 1809 foram 39 peças para a Capela Real, na qual atuavam dezenas de instrumentistas e cantores, brasileiros e oriundos da Europa.

    Em 1811, chegava ao Rio vindo de Lisboa o compositor da corte Marcos Portugal. Já afamado autor de óperas na Europa, ele acabou difundindo um estilo mais teatral e claramente profano, que encontrou melhor acolhida do que a produção do padre José Mauricio. Apesar disso, continuaram a aparecer novas composições do padre mulato, com destaque para a Missa de Réquiem e o Ofício de Defuntos, ambos de 1816, considerados obras-primas.

    Os problemas financeiros do Império recém-criado repercutiram na própria Capela (agora Imperial). Dificuldades econômicas afligiram assim os últimos anos de vida de José Mauricio, que providenciava o sustento dos cinco filhos que teve com Severiana Rosa de Castro, apesar do celibato eclesiástico. A morte em 1830 encerra um percurso de grande criatividade artística, expressa por cerca de 250 obras chegadas a nós, com quase outras tantas das quais se tem só o registro, hoje perdidas por completo.

     

    Marcelo Scarroneé pesquisador da Revista de História da Biblioteca Nacional.

     

    Saiba mais

    FAGERLANDE, Marcelo. O método de Pianoforte do padre José Maurício Nunes Garcia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995.

     

    GAMA, Mauro. José Maurício, o padre compositor. Rio de Janeiro: Funarte, 1983.

     

    MATTOS, Cleofe Person de. Catálogo temático das obras do padre José Maurício Nunes Garcia. Brasília: MEC, 1970.

     

    MATTOS, Cleofe Person de. José Mauricio Nunes Garcia. Biografia. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1997.