Era início do século XX e o Rio de Janeiro florescia, reconstruído em conseqüência da reforma capitaneada pelo prefeito Pereira Passos (1902-1906), que pusera abaixo bairros do Centro da velha capital, erguendo uma nova cidade nos moldes de Paris. A industrialização e as transformações urbanísticas, como a abertura da Avenida Central, a construção do Theatro Municipal e da Escola de Belas Artes, modificam a rotina do Rio da belle époque, que ganha uma nova efervescência com seus cafés-concerto, as confeitarias Cave e Colombo, as confrarias literárias _ entre elas, as reuniões na Livraria Garnier _ e os teatros. A cidade contava também com uma nova estrutura, como resultado da reforma sanitária posta em prática por Oswaldo Cruz, que não só valorizou o papel da saúde pública, mas também o da ciência então desenvolvida no Instituto Soroterápico Federal, recém-edificado na fazenda de Manguinhos (1900). É nesse cenário que se destaca a figura de Guilherme Guinle, símbolo de uma elite que constrói uma nova relação com a cidade e suas necessidades frente à pobreza inaugurando uma prática inédita _ o mecenato científico, diretamente ligado à filantropia e à caridade.
Prática indissociável da questão da pobreza, a filantropia pode ser concebida a partir da idéia cristã de salvação e também como resposta a uma demanda social combinada com uma política própria dos ricos, que mantêm assim sua forma de poder. Não era à toa que, ao longo dos séculos, as ações beneficentes vinham sendo dirigidas aos hospitais, por sua feição de abrigo das misérias humanas _ os velhos, os loucos, os enjeitados, as parturientes e os doentes. Os filantropos podem ajudar o próximo de maneiras diversas: por meio de doações e legados, de loterias, de bailes beneficentes, de sermões religiosos. Assim, a filantropia é, por natureza, assunto de ricos.
O século XIX trouxe uma mudança no olhar sobre o hospital e sobre a assistência aos pobres. Aos poucos, o hospital se transformou em espaço de cura, deixando de ser um local para encarceramento das misérias humanas. A descoberta do soro antidiftérico por Louis Pasteur, em 1894, muda a relação dos filantropos com a saúde, e eles percebem a medicina como uma nova forma de combater a pobreza _ por meio do controle da doença. Passam, então, a financiar instituições de pesquisas biomédicas, notadamente aquelas inspiradas no padrão criado por Louis Pasteur.
-
Essas ações trazem, de maneira evidente, uma forte herança da colonização portuguesa: a tradição católica de socorro à pobreza, centrada nas ações pias das Irmandades e Ordens Terceiras _ organizações leigas criadas em torno da devoção a um determinado santo _, e nas iniciativas da Irmandade da Misericórdia, a mais antiga ordem de caridade do Brasil. No que se refere à assistência hospitalar, até o fim do século XIX, o único hospital geral da cidade do Rio de Janeiro era o da Santa Casa da Misericórdia, mantido pela Irmandade da Misericórdia.
Ao longo do século XIX, houve considerável crescimento da rede hospitalar na cidade do Rio de Janeiro, ainda que dependente das associações de auxílio mútuo e de caráter privado. A exceção, no fim do século, é a criação da Policlínica Geral do Rio de Janeiro (1882), instituição também filantrópica. Na virada do século surge a Policlínica de Botafogo (1899). Em 1922 é aberto o Hospital São Francisco de Assis, ligado ao Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP). Mesmo assim, a assistência pública continuava a depender da Santa Casa da Misericórdia, que passou a contar com o apoio das duas policlínicas e do hospital recém-criado para o atendimento da população carente. Assim, o Hospital São Francisco de Assis pode ser considerado a primeira resposta oficial à falta de leitos na cidade.
É a partir da década de 1920 que o Estado se mostra mais atuante em relação à saúde, até então um assunto prioritariamente ligado às ações da Igreja Católica, com suas Irmandades e Ordens Terceiras. A gestão de Carlos Chagas (1919-1927) no DNSP marca o início do processo de centralização das ações de saúde pública, seguindo o modelo desenvolvido e praticado na capital federal, que se intensifica com o movimento sanitarista nacional.
-
As transformações que surgiram a partir da experiência de Pasteur e do advento da microbiologia abriam espaço para a entrada do Estado nas ações de saúde pública. Vale destacar que as principais instituições de pesquisa biomédica criadas na virada do século XIX para o XX estavam sob tutela governamental: o Instituto Bacteriológico de São Paulo (1892) e o Instituo Butantã (1901), ambos geridos pelo governo de São Paulo, e o Instituto Soroterápico Federal (1900, posteriormente Instituto Oswaldo Cruz _ IOC), no Rio de Janeiro, criado e gerido pelo governo federal.
É neste contexto de institucionalização da ciência biomédica no Brasil e de sua valorização, dos trabalhos de Manguinhos e de Oswaldo Cruz à frente da Diretoria Geral de Saúde Pública do Distrito Federal, que se dá o encontro da ciência com o capital industrial.
Em 1905, a Companhia Docas de Santos, principal empreendimento dos sócios Cândido Gaffrée e Eduardo P. Guinle, construía uma usina hidrelétrica na Fazenda de Itatinga, na serra de Santos, com a finalidade de proporcionar autonomia elétrica ao porto da cidade. Entretanto, um surto de malária prejudicava o andamento das obras. Cândido Gaffrée solicitou a Oswaldo Cruz, então diretor do Instituto de Manguinhos e diretor geral da Saúde Pública do Distrito Federal, que indicasse alguém para estudar o problema. O escolhido foi Carlos Chagas, que na época ainda não pertencia aos quadros de Manguinhos, mas defendera tese de doutoramento sobre o tema, com pesquisa realizada no Instituto sob a orientação direta de Oswaldo Cruz. A ação profilática posta em prática por Chagas permitiu que em curto espaço de tempo, menos de três meses, os trabalhos no porto pudessem ser retomados.
-
As pesquisas laboratoriais em Manguinhos e a bem-sucedida missão de Chagas em Itatinga podem ser consideradas o ponto inicial dessa produtiva relação entre homens de capital e a ciência. Uma relação que não se restringia ao apoio financeiro, mas que era também pautada pela amizade e pela confiança entre cientistas e empresários. Carlos
Chagas e Guilherme Guinle costumavam se encontrar nos salões do Rio de Janeiro,como os do Jockey Club, do qual eram sócios e freqüentadores.
Guilherme Guinle e Carlos Chagas têm atuações importantes nos anos1920.Em1917, com a morte de Oswaldo Cruz, Chagas assume a direção do IOC, cargo que ocupará até sua morte, em 1934. Em 1919, assume também a direção do recém-criado DNSP, sendo o responsável pela Reforma Sanitária iniciada em 1920. Guinle, por sua vez, assume a direção dos negócios da família após a morte de Cândido Gaffrée _ que não tinha herdeiros diretos e deixou sua fortuna para os “sobrinhos” Guinle. Guilherme se empenha em dar continuidade aos trabalhos dos sócios Gaffrée e Guinle, tanto no que se referia às práticas empresariais, quanto no que dizia respeito à filantropia e ao mecenato _ seja mantendo o financiamento ao laboratório privado dos irmãos Álvaro e Miguel Ozório de Almeida, que Gaffrée financiava desde 1915, seja realizando uma vontade expressa dele: construir um hospital. A intenção de legar uma determinada quantia para essa obra estava em um papel encontrado por Guilherme Guinle entre documentos do empresário.
-
Guilherme Guinle vai além da construção de um hospital, investindo alto na criação de um centro de referência para controle, tratamento e pesquisa sobre sífilis e doenças venéreas, surgindo assim o Hospital Gaffrée e Guinle (1924-1927). A proposta desse centro está diretamente relacionada às ações da Inspetoria da Lepra e Doenças Venéreas, criada em 1920 como parte da Reforma Sanitária, o que torna impossível pensar na criação do hospital sem situá-la no contexto das reformas postas em prática pela gestão de Carlos Chagas no DNSP.
É neste ambiente favorável tanto no âmbito governamental _ que instituiu o DNSP e o novo Regulamento Sanitário _ quanto social, tendo em vista a criação da Sociedade Brasileira de Dermatologia e Sifilografia (1912), a realização no Rio de Janeiro do Congresso Sul-Americano de Dermatologia e Sifilografia (1918) e a organização do movimento eugênico no país, que nasce a Fundação Gaffrée e Guinle, que se apresenta como resposta às propostas e reivindicações destes movimentos, cujos representantes no governo eram Carlos Chagas, diretor do DNSP, e Eduardo Rabello, chefe da Inspetoria de Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas.
A abertura do hospital e de seus doze ambulatórios representa um encontro da vontade do filantropo _ de Cândido Gaffrée e, sobretudo, de Guilherme Guinle _com o empenho do Estado em sanear o país, aliado à existência de um grupo de médicos e intelectuais que pensavam os destinos da nação por meio da salvação do homem brasileiro. A medicina e a ciência caminham a serviço da construção nacional.
-
É justamente nessa perspectiva que a atitude filantrópica de Guilherme Guinle se torna singular. Guinle estava preocupado principalmente com o ideal da construção da nação. E em nome dela se lançava no desafio do combate à sífilis, na tentativa de erguer um hospital para cancerosos (1927-1934) ou ainda na construção de um Centro Internacional de Leprologia no Instituto Oswaldo Cruz (1934), ou no empenhado apoio ao Serviço Especial de Grandes Endemias (Sege, 1934), dirigido por Evandro Chagas e vinculado ao IOC. Não era a pobreza que estava sendo combatida, mas a doença que impedia o trabalho do homem e o crescimento da nação.
Guinle se mostrava, assim, partidário de um projeto nacional liderado por Carlos Chagas, que tinha na doença um grande inimigo a ser combatido em nome do futuro.A morte de Evandro Chagas, em 1942, marca uma pequena mudança no rumo das ações de Guilherme Guinle: de um lado, no auxílio à criação do Laboratório de Hematologia de Walter Oswaldo Cruz, no IOC, que ainda guardava forte vinculação com o projeto de Carlos Chagas, e, de outro, o Instituto de Biofísica de Carlos Chagas Filho, na Universidade do Brasil.
-
É certo também que este período representa uma grande mudança na pesquisa científica internacional, sobretudo com o fim da Segunda Guerra Mundial,momento em que surgem novas tecnologias. Antes disso, durante os anos de conflito, o processo de circulação de mercadorias para pesquisa médica e de conhecimento foi radicalmente prejudicado. Neste sentido, o apoio de Guilherme Guinle foi fundamental para a importação de equipamentos e material para os laboratórios. Foi Guinle quem possibilitou ainda a criação da Revista Brasileira de Biologia (1942) _ financiada por ele até sua morte, em 1960 _, um espaço onde pesquisadores brasileiros podiam continuar a publicar seus trabalhos, já que os periódicos europeus estavam suspensos. À frente da Revista estavam Miguel Ozório de Almeida e outros pesquisadores do IOC.
O apoio aos cientistas brasileiros tinha os mais diversos fins, desde a manutenção dos serviços, o pagamento de pesquisadores e de material de expediente, até a importação de equipamentos. No caso específico de Walter Oswaldo Cruz, a “verba Guinle” significava o pagamento de hora extra aos funcionários da Seção de Hematologia, aquisição de material especializado e de uso contínuo, reparo da aparelhagem, aquisição de livros e assinaturas de revistas. Já no caso de Evandro Chagas, servia pela manutenção do serviço e também por outras facilidades, como o acesso ao Correio Aéreo Militar, por intermédio da relação de Linneo de Paula Machado _ cunhado de Guilherme Guinle e benfeitor do CAM _ com o brigadeiro Eduardo Gomes.
Desta forma, as ações de Guilherme Guinle devem ser interpretadas como fruto de seu tempo, do forte sentimento nacional, da vontade e da certeza de estarem todos construindo juntos um Brasil, país do futuro.
Gisele Sanglard é doutora em História das Ciências da Saúde pela Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, onde defendeu a tese “Entre os salões e o laboratório:filantropia, mecenato e práticas científicas no Rio de Janeiro _ 1920-1940”, e pesquisadora visitante da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.
O mecenato da cura
Gisele Sanglard