D. Lope e D. Diego são amigos e amam a mesma mulher, D. Leonor. Mas não sabem disso. D. Diego é correspondido, mas quando descobre que D. Lope também está apaixonado por ela, decide acabar com a relação em nome da amizade. Diz a D. Leonor que não a ama mais. Vingativa, a jovem passa a amar D. Lope. Contudo, este vem a saber do sacrifício que seu amigo fez, e então pede a D. Leonor para voltar a amar D. Diego. Ela não acata o pedido. No fim da história, D. Lope acaba se casando com D. Leonor, enquanto D. Diego se casa com D. Isabel, irmã de seu amigo.
Este é o enredo de Hay amigo para amigo, comédia de capa e espada publicada em 1663 por Manoel Botelho de Oliveira (1636-1711). Não é uma peça qualquer. Trata-se da mais antiga obra literária publicada por um autor nascido no Brasil. Pelo menos é o que nos informam recentes pesquisas. Durante muito tempo pensou-se que a primazia era de outra obra.
Muito esforço foi feito, a partir do século XIX, para localizar a “origem” da literatura brasileira. Para a formação de uma cultura nacional autônoma, era importante descobrir que autor nascido em terras do atual Brasil publicara em primeiro lugar um texto literário. Inicialmente, pensou-se que o feito coubera ao poeta Bento Teixeira, autor da Prosopopéia, editada em Lisboa em 1601. Mas quando Capistrano de Abreu publicou, em 1925, a Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil (Denunciações da Bahia 1591-1593), o sociólogo Gilberto Freyre reparou em um detalhe: um dos interrogados era o mesmo Bento Teixeira, um cristão-novo nascido... no Porto. A naturalidade do autor, por sinal, estava sugerida em um verso de sua Prosopopéia, no fim da seguinte estrofe:
Mas o Senhor que assiste na alta Cúria
Um mal atalhará tão violento,
Dando-nos brando Mar, vento galerno,
Com que vamos no Minho entrar paterno
Desde então, o posto de primeiro autor literário do Brasil passou a ser de Manoel Botelho de Oliveira. Em 1705, este baiano publicou em Lisboa um livro de poemas em várias línguas, com o título Música do Parnaso dividida em quatro coros de Rimas portuguesas, castelhanas, italianas & latinas. Com seu descante cômico reduzido em duas Comédias. O “descante cômico” se refere às duas peças de teatro em castelhano que fecham o livro: Hay amigo para amigo e Amor, engaños y celos. Em uma dedicatória ao “Exmo. Sr. D. Nuno Álvares Pereira”, o autor demonstra que tinha consciência do caráter inédito do seu livro: “Ditaram as Musas as presentes Rimas, que me resolvi a expor à publicidade de todos, para ao menos ser o primeiro filho do Brasil que faça pública a suavidade do metro, já que o não sou em merecer outros maiores créditos na Poesia”.Para fazer uma afirmação tão taxativa, ele estava bem informado. Sabia que Bento Teixeira era natural do Minho, pois, embora não o conhecesse pessoalmente, ambos foram alunos do Colégio dos Jesuítas na Bahia. Como a elite intelectual baiana era muito limitada, as notícias corriam. Além disso, sabia da existência dos três breves poemas de Diogo Gomes Carneiro publicados nas preliminares de uma tradução que fez – História do Capuchino Escocês, em 1641. O mesmo Gomes Carneiro também havia publicado um epigrama latino de seis versos no volume Memórias Fúnebres, compilado em 1650. Mas esses quatro poemas circunstanciais não podiam ser comparados com o peso literário das “Rimas” de Manoel Botelho de Oliveira.
E foi esta a versão que perdurou até hoje. Em 2005, foram devidamente festejados os 300 anos da publicação da “primeira obra literária” produzida e impressa pelo engenho de um brasileiro. O problema é que o baiano esqueceu-se de mencionar um dado fundamental para os futuros estudiosos: aquele não era o seu primeiro livro. Uma pista disso está no próprio Música do Parnaso. No “Prólogo ao leitor”, Botelho de Oliveira registra que a peça Hay amigo para amigo andava “impressa sem nome” e que Amor, engaños y celos saía “novamente escrita”. Antes de conclusões precipitadas, é bom lembrar que “novamente” significava, na época, “ex novo”, ou “pela primeira vez”. Ou seja: a comédia Amor, engaños y celos tinha sido escrita pouco antes de sua publicação, em 1705. Mas o mesmo não ocorria com Hay amigo para amigo. Este livro havia sido publicado de forma anônima em Coimbra, na imprensa de Tomé Carvalho, no ano de 1663. Por essa época, o jovem Botelho de Oliveira estudava na cidade – onde conviveu durante três anos com o também jovem escritor Gregório de Matos (1636-1695) – e começava a compor versos em várias línguas, prazer que o acompanharia até o fim dos seus dias.
O esquecimento dessa comédia em castelhano em todas as bibliografias luso-brasileiras tem algumas explicações simples. Como a peça teatral foi publicada pela primeira vez de forma anônima e o título completo do livro de 1705 (Música do Parnaso...) não inclui os nomes das duas comédias, os catálogos de bibliotecas acabaram não relacionando o autor (Botelho de Oliveira) com sua peça Hay amigo para amigo. Além do mais, as tradições bibliográficas hispânicas e luso-brasileiras nem sempre caminham juntas. Em 1860, o Catálogo bibliográfico y biográfico del teatro antiguo español (de Cayetano Alberto de la Barrera y Leirado) já confirmava a existência de Manuel Botello (adaptação do sobrenome do poeta) de Oliveira e citava suas duas obras teatrais. Informação que jamais chegou ao mundo lusitano.
O fenômeno de “castelhanização” dos nomes é outro fator de confusão nas pesquisas bibliográficas ibéricas. Exemplos não faltam: Jorge de Montemor assinou Los siete libros de la Diana, em meados do século XVI, como Jorge de Montemayor. No século XVII, os vários livros que o poeta português Miguel Botelho de Carvalho publicou na Espanha – La fábula de Píramo e Tisbe (1621), Prosas y Versos del Pastor de Clenarda (1622) e La Filis (1641) – imprimiram na folha de rosto o nome Botello de Carvallo.
O contrário também ocorria. Como quando o alferes Jacinto Cordeiro homenageou o insigne Lope de Vega depois do seu falecimento, no Elogio de Poetas Lusitanos al Fénix de España Fr. Lope Félix de Vega Carpio, en su laurel de Apolo por el Alférez Jacinto Cordero (1631). No título da obra, castelhanizou seu próprio nome (Cordeiro virou Cordero), e mais adiante, na apresentação, lusitanizou o nome do poeta espanhol: Lope de Vega Carpio passou a ser Lopo de Veiga Carpio. Ainda nos dias de hoje, é curioso observar que nas três edições do valioso Índice Biográfico de España, Portugal e Iberoamérica, o Ibepi (1990, 1995 e 2000), dividem espaço, às vezes na mesma página, o poeta Botelho de Oliveira e o poeta Botello de Oliveira.
Anos depois de sua passagem por Coimbra, quando estava finalizando a edição de Música do Parnaso, o baiano voltou à antiga peça teatral e retocou alguns versos, especialmente aqueles que soavam lusitanos demais. Aprimorava, portanto, seu castelhano escrito: “Dar las cuestas será justo” foi reescrito como “Volverle espaldas es justo”, “Vitales aguas le vierto” foi corrigido para “Vital rocío le vierto” e “a los tragos de brigar” melhorou-se com “el trago de pelear”.
Existem 14 exemplares conhecidos de Música do Parnaso. Mais raras ainda são as edições do livro Hay amigo para amigo. Ao que se sabe, restam apenas dois exemplares da obra inaugural da “literatura brasileira”: um na biblioteca do Institut del Teatre de Barcelona e outro na Biblioteca Nacional de Lisboa.
Pelo menos por enquanto. Como aprendemos ao longo dos séculos, o conhecimento bibliográfico está sempre sujeito a revisões. Qualquer dia, uma nova descoberta pode revelar um “primeiro livro” ainda mais antigo...
Enrique Rodrigues-Moura é professor da Universidade de Göttingen (Alemanha) e autor da tese Relaciones literarias entre la Península Ibérica y Brasil: estudio y edición crítica de la obra poética de Manoel Botelho de Oliveira (1636-1711) (Universidade Complutense de Madrid, 2007).
Saiba Mais - Bibliografia:
OLIVEIRA, Manoel Botelho de. Poesia completa. Editado por Adma Muhana. São Paulo: Mrtins Fontes, 2005.
TEIXEIRA, Ivan (org.). Música do Parnaso, edição em fac-símile. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005.
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Florilégio da Poesia Brasileira. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de letras, 1987, 3 volumes.
Saiba Mais - Na Internet:
Música do Parnaso (1711), em http://purl.pt/14315.
O número 1
Enrique Rodrigues-Moura