No mapa mundi padrão parecem extremos opostos. Mas o considerável pedaço de planeta que circunda o Oceano Pacífico – que sobe pela Austrália rumo ao sudeste asiático, China, Japão e Alasca, e desce pelo oeste da América do Norte, México, América Central e toda a cordilheira dos Andes – não é apenas um arco de fogo resultante do roçar de placas tectônicas que produzem terremotos e vulcões. Idas e vindas de influências culturais ao longo da história criaram naquela vasta região identificações curiosas e singulares.
As origens da América são fundamentalmente orientais. Os primeiros homens a habitar o continente vieram da Ásia Oriental e, embora tivessem escassos rudimentos culturais – com suas toscas peles e alguns utensílios de caça de pedra e madeira – foram eles que começaram a povoar a América de norte a sul.Com o passar do tempo, esse elemento oriental foi se tornando autóctone, independente e com características próprias, mas não totalmente distintas das “antigas”: a percepção circular do tempo, a religiosidade e os rituais xamânicos, a comunhão com a terra e até os troncos linguísticos arcaicos continuaram tendo impressionantes paralelos transpacíficos, mesmo após milhares de anos. A conexão entre o xamanismo siberiano e o esquimó é bem clara, com seus semelhantes ritos de iniciação, remédios de ervas e técnicas parecidas de cura e de adivinhação.Mas foi a partir do século XVI que se produziu nessa região uma das maiores misturas culturais da história. Pela primeira vez, e de alguma forma ligando Oriente e Ocidente, houve uma “fusão” entre ameríndios, europeus e africanos, especialmente na região que conhecemos hoje como América Latina. Os europeus trouxeram muitos produtos e animais originários do Extremo Oriente (como as galinhas), além de recentes invenções orientais, como tinta, papel, bússola, seda e pólvora.Alguns, como o autor mexicano Jose Vasconcelos, chamaram de “raça cósmica” essa união de todos os povos, que criou um singular cordão umbilical com o Oriente durante os séculos coloniais. A cada ano, caravelas conectavam Acapulco (México) a Manila (Filipinas), e também o Oriente com a Europa, e suas mediações americanas. A rota espanhola para as Filipinas e para Formosa e China passava sempre pela mexicana Acapulco – percurso que se manteve até as lutas de independência no México, em 1815. Os navegantes portugueses, por sua vez, privilegiavam a viagem pelo Oceano Índico. Ainda assim, propiciaram nesse período a indireta, porém forte, relação entre o Brasil e suas colônias orientais de Goa, Formosa, Macau e Timor.No século XIX a América continuou recebendo essas importantes influências, especialmente pela migração direta de chineses e japoneses. Milhares de chineses deixaram suas vidas e seus trabalhos e se uniram à construção do Canal do Panamá. Aqueles esforçados comerciantes e operários iniciaram um lento mas irreversível movimento migratório em direção à América, e também para outras partes do mundo. Os navegantes japoneses chegaram ao Peru e ao Brasil em grande número, não só em busca de pesca, mas também transportando compatriotas de regiões orientais superlotadas para essas novas terras, ainda em relativo processo de povoamento. Em São Paulo formaram o populoso bairro da Liberdade. O Peru chegou a ter um presidente de ascendência direta japonesa, Alberto Fujimori, e mantém uma proximidade com aspectos asiáticos que vão muito além de seus famosos e deliciosos restaurantes (ou chifas), de raízes chinesas misturadas com elementos autóctones.Importantes elementos da cultura brasileira vêm de outro Oriente, não o “extremo”, mas o “próximo”: pela influência direta da cultura árabe, moura, ou incorporada aos costumes adquiridos na Espanha, em Portugal, e pelos escravos africanos já impregnados de “orientalismo”. A noção de “Oriente” não é meramente geográfica. Trata-se antes de um sentido cultural global que inclui elementos não europeus – sejam eles da África, do Islã, da Índia, ou do centro ou do sudeste asiático. Neste sentido, “ecologicamente”, o parentesco ancestral do Brasil estaria mais próximo desse “Oriente” cultural do que do Ocidente.Considerando inúmeros exemplos de vários aspectos da vida cotidiana, o sociólogo Gilberto Freyre apresentou esse poderoso fluxo de influências orientais na vida e nos estilos tradicionais brasileiros: o mobiliário doméstico (persianas/treliças e janelas de madeira, tapetes), adornos corporais (como o turbante para as mulheres), alimentação, transportes antigos, como o “palanquim”, cerâmicas, trajes, o carnaval. Outros chegaram por meio das culturas ibéricas, impregnados já de elementos não europeus, como os árabes e os judaicos, tais como a arte moura, os preconceitos da “pureza de sangue”, a importância da religião, da “raça”. O comércio português contribuiu com esse processo, gradativamente substituído pelo holandês e pelo inglês, que traficaram chás, sedas, cerâmicas e outros produtos orientais “trocados” pelo tabaco ou pelo açúcar da América.A imigração de camponeses chineses no século XIX, impulsionada por uma situação explosiva de miséria em seu país e pela necessidade urgente de mão de obra barata demandada pela expansão capitalista na América, completaria e aprofundaria esse vetor orientalista. Foi também Gilberto Freyre quem inventou o conceito de “lusotropicologia” (mais tarde expandido para “iberotropicologia”), em que fica clara a conexão de diversas regiões africanas (Angola, Moçambique, Guiné) e asiáticas (Goa, Timor, Macau, Filipinas) não só no Brasil, mas em todas as culturas ibero-americanas (incluindo Espanha e Portugal). Essa área de influência cultural seria comparável e até mais ampla que a China – gerando o curioso termo “China Tropical”, aplicado pelo autor ao Brasil.Alguns ornamentos e roupas considerados essenciais ao espanhol mais “puro” ou “genuíno” – como o xale de seda que as mulheres usam na Feira de Sevilha, nas corridas ou na Semana Santa de Castela ou Andaluzia – vêm da China ou de Manila. Algo semelhante acontece nas tradições do México e de Lima ou Trujillo, no Peru, especialmente onde as mulheres usam sedas, xales, bordados e enfeites similares em suas festas.Hoje, muitas decisões políticas e econômicas de impacto para o mundo são tomadas em cidades como Xangai, Jacarta e Hong Kong, novos centros de poder e influência no Oriente, cada vez mais populoso e mais importante. Muito se tem falado da emergência recente dos BRICs, países que, não por coincidência, estão em sua maioria localizados na região asiática e americana.
A radical diferença linguística atual, os distintos elementos temperamentais, religiosos ou políticos tendem a frear, em parte, a possibilidade de uma nova “fusão” oriental. A ideia do pan-pacífico e o conceito de integração das civilizações em escala macrocultural, e mesmo global, ainda são teorias utópicas. O equilíbrio entre o local e o global, entre a cultura herdada e a futura (quem sabe global, universalista e intercultural) não será alcançado sem respeito, participação e educação.O fato é que os países latino-americanos não podem renunciar aos seus componentes europeus, principalmente ibéricos – ampliados mais tarde com características latinas e anglo-saxãs – suas raízes africanas e as importantes ligações orientais. Talvez o caminho adequado para a integração não seja outro senão aquele marcado por nossa própria história ibero-americana, aberta às culturas nacionais mais amplas e, finalmente, para todos os continentes. Respeitando as peculiaridades, alcançar esta união do Oriente e do Ocidente equivaleria a construir uma identidade aberta e melhorar as relações de convivência entre os povos.Ángel-Baldomero Espina Barrio é professor da Universidade de Salamanca e editor de Culturas y mestizajes iberotropicales (Editorial Massangana/ Fundação Joaquim Nabuco, 2011).Saiba MaisCASCUDO, Luís da Câmara. Mouros, franceses e judeus. São Paulo: Global Editora, 2001.CORREIA, Jesualdo. Pelas trilhas do Oriente. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008.NIMER, Miguel. Influências orientais na língua portuguesa. São Paulo: Edusp, 2005.FilmesGaijin – Os caminhos da liberdade (Tizuka Yamasaki, 1980)Gaijin – Ama-me como sou (Tizuka Yamasaki, 2005)
O oriente é aqui
Ángel-Baldomero Espina Barrio