Neste ano do centenário da Revolta da Chibata, novas janelas se abrem sobre o episódio marcado por perseguições, medo e esquecimento. Até então, os únicos descendentes de um dos 2.300 marujos desta rebelião conhecidos eram os filhos do líder principal do levante, o marinheiro João Cândido Felisberto (1880-1969), apelidado de Almirante Negro [ver RHBN nº 9, abril de 2006]. Agora aparece mais um de seus líderes: Adalberto Ferreira Ribas (1891-1963), que tem sua trajetória reconstituída graças aos depoimentos de seus filhos, à documentação oficial da Marinha e a outros testemunhos de contemporâneos, como João Cândido e Francisco Dias Martins. Tudo indica que Ribas tenha sido o escriba do manifesto com as reivindicações do movimento contra os castigos corporais enviado ao governo do marechal Hermes da Fonseca (1910-1914).
João Cândido, no seu livro de memórias O sonho de liberdade [ver RHBN nº 44, maio de 2009), cita Adalberto Ribas, homem branco e com domínio da cultura letrada, como um dos integrantes da oficialidade rebelde do cruzador Bahia. Diante dos familiares, o próprio Ribas assumia a autoria do manifesto. Dizia também que os colegas marujos eram quase todos analfabetos, enquanto ele conversava em francês com o então tenente Armando Trompowsky (1889-1964).
Marinheiro de 1ª classe, Adalberto tinha 19 anos quando a revolta eclodiu, em 22 de novembro de 1910. Seus filhos Adaléia Ribas Barbosa, 80 anos, e o caçula Marcos Valério Ribas, 66 anos, que obtiveram recentemente sua ficha no Serviço de Documentação Geral da Marinha, resolveram contar a história do pai, que passou a vida se escondendo ou sofrendo represálias. A insurreição dos marinheiros que comandaram os mais possantes navios de guerra e ameaçaram bombardear o Rio de Janeiro, então capital do país, toca em assuntos que são problemas ainda hoje: racismo, desigualdade social e violência do Estado contra as camadas pobres da população.
A origem da família de Adalberto no país remonta a um Ribas espanhol, a serviço da rainha Carlota Joaquina, que veio para o Brasil com a Corte portuguesa em 1808. Nascido em Monte Alegre, sertão da Bahia, Adalberto era filho de Maria Domingas Ribas e de Valério Ferreira Ribas, proprietário rural, tabelião e monarquista que perdeu todos os bens para “escravos e republicanos”. Adalberto não conheceu o pai, falecido pouco antes do seu nascimento. Ironia do destino, o marujo Ribas seria defensor de valores republicanos expressos no manifesto de 1910.
Sem a presença paterna e com a decadência da família, ainda menino acabou sendo entregue por sua mãe a padres italianos e franceses, missionários na região, para ser educado. Daí vêm sua cultura geral, sua caligrafia caprichada e seu apego ao idioma francês.
Insatisfeito com o rigor da educação dada pelos clérigos, Adalberto fugiu aos 14 anos e entrou para a Escola de Aprendizes Marinheiros de Salvador. Aos 16 anos, alistou-se como grumete (graduação mais baixa das praças da Armada) no navio-escola Benjamin Constant, do qual João Cândido também foi tripulante. Os principais líderes do movimento compartilharam os mesmos espaços. Numa viagem em que Ribas percorreu o Oceano Pacífico, passando por Nagasaki, Hong Kong e Xangai, estava também o marujo Manoel Gregório do Nascimento (1889-?), auxiliar de cozinha e músico. Ele viria a ser o comandante do encouraçado São Paulo durante a Revolta da Chibata. Ribas também faria viagem ao Cone Sul no cruzador Bahia, ao lado de Francisco Dias Martins (1888-1945), considerado um dos mentores do levante. A passagem de Ribas pela força naval durante quase três anos, quando se tornou timoneiro e telegrafista, foi marcante para sua formação.
De acordo com o próprio Ribas, ele nunca sofrera castigos corporais: “leve e ágil”, fazia tarefas antes de qualquer colega. Em sua ficha também não constam tais punições. Adalberto contou a seus filhos que durante a viagem do Bahia ao Chile, às vésperas da rebelião, houve protestos quando um marujo recebeu chibatadas no convés. A cada golpe seguia-se uma vaia, vinda das tripulações dos navios estrangeiros que presenciavam a cena. Este tipo de castigo subsistia somente no Brasil.
Ainda durante a passagem pelo Cone Sul, os marujos brasileiros reagiram contra os maus-tratos. Um bilhete assinado por “Mão Negra” ameaçava: “ninguém é escravo de oficiais e chega de chibata. Cuidado!” Segundo vários estudiosos, o “Mão Negra” seria Dias Martins, instrutor de marinheiros e presidente de uma associação literária, mas pode ter sido, na verdade, Adalberto Ribas. Seus filhos contam que, quando a mãe deles, Laudelina Motta, discutia com o pai, ela acusava-o entre os dentes: “Mão negra, mão negra...”, o que o deixava desconcertado. Na ficha funcional de Ribas, no entanto, só aparecem elogios a seu “zelo, dedicação e disciplina”.
Porém, a autoria do principal documento produzido pelos rebeldes não é certa. Além de Dias Martins, outro marinheiro, Ricardo Freitas, é apontado como responsável. A verdade é que os três – Ribas, Martins e Freitas – tinham pontos em comum: eram considerados brancos, apresentavam domínio da escrita, eram telegrafistas e serviam a bordo do Bahia no momento da revolta. De qualquer forma, o responsável por ter escrito o manifesto não foi necessariamente o autor exclusivo de seu conteúdo. O texto expressa a demanda coletiva assinada pelo grupo de rebeldes e é rico pelo teor da argumentação e pela clareza das reivindicações. É uma prova da coesão do movimento e da importância da escrita e da leitura entre os revoltosos, com outros comunicados radiografados pelos rebeldes. Na época, o documento ficou restrito às autoridades e só veio a público meio século depois, na obra do jornalista e escritor Edmar Morel.
A presença de Adalberto Ribas na Revolta da Chibata também se faz notar durante o episódio em que os revoltosos dispararam tiros de canhão em advertência, segundo depoimentos de João Cândido e de outros marujos. Mas as balas acabaram atingindo o Morro do Castelo, matando acidentalmente duas crianças.
Os tiros de canhão, únicos verdadeiros dados pelos marujos – os outros foram de “pólvora seca”, sem munição –, foram explorados por oficiais da Marinha e pela imprensa contrária ao levante. Nunca se soube quem foram os autores dos disparos, nem de que navio saíram. João Cândido lamentou o episódio, e os marinheiros fizeram entre si uma coleta de dinheiro para as famílias das vítimas. O encarregado de recolher a soma no Bahia foi, justamente, o artilheiro Ribas, segundo carta de Dias Martins apreendida pelas autoridades.
Detido em dezembro de 1910, Adalberto Ferreira Ribas foi transportado numa embarcação na Baía da Guanabara. Temendo por sua vida, Adalberto aproveitou uma distração da escolta e jogou-se no mar, mergulhando fundo para escapar dos tiros de seus perseguidores. Bom nadador, hábil, conseguiu submergir por um longo tempo. Mais tarde, chegou ao cais, abateu a sentinela que estava bêbada e vestiu seu uniforme, podendo assim escapar, como contou a amigos e parentes. Nos dias seguintes, muitos marinheiros foram mortos na prisão militar da Ilha das Cobras ou no navio mercante Satélite, que rumou para a Amazônia. Ribas constava entre os 70 réus no processo do Tribunal Militar de 1912, mas não compareceu e foi considerado desaparecido. À revelia, e apesar de anistiado, Ribas acabou sendo excluído da Marinha.
A participação na Revolta da Chibata o acompanhou para sempre. Nem ele nem seus filhos puderam assumir qualquer função nas Forças Armadas e chegaram a ser obrigados a mudar de residência. Segundo seu filho Marcos Valério, as perseguições atingiram até as atividades civis, já que Ribas foi vetado para a chefia de uma companhia telefônica em Aracaju devido às pressões feitas pelo almirante Amintas Jorge (hoje nome de praça na cidade). Tentando esconder seu sobrenome, Adalberto refugiou-se na colônia alemã em Brusque (SC), onde foi professor de Português até meados da Primeira Guerra (1914-1918). Atuou também como eletricista nos últimos anos de vida.
O professor Ribas, que chegou a dirigir o colégio particular Monte Alverne, em Maruim (SE), ensinava seus alunos a recitar em francês poemas de Victor Hugo e a cantar a “Marselhesa”, mostrando que a francofilia podia ser também um sentimento comum às pessoas do meio popular, além das elites. Ele manteve uma escolinha no bairro carioca da Ilha do Governador para preparar candidatos ao ingresso na Marinha. Porém, quase não tinha livros em casa. Politicamente, Adalberto assumiu posição semelhante à de João Cândido, filiando-se à Ação Integralista Brasileira (AIB), entidade de tendência nacionalista e fascista. Sua filha Adaléia se lembra de ter participado de marcha integralista. Seu pai seria preso em sala de aula, na onda de repressão a este movimento, em 1937. Teve, ainda, rápida passagem pela maçonaria.
Interessado pelas ciências, num de seus últimos registros, o participante da rebelião ocorrida no mar (22 anos após a abolição da escravidão) anotou no seu calendário a primeira incursão do homem fora do planeta Terra. Referindo-se ao feito pioneiro do astronauta soviético a 12 de agosto de 1961, escreveu: “Yuri Gagarin vai ao espaço cósmico.” A trajetória de Adalberto Ferreira Ribas ajuda a compreender a Revolta da Chibata não como movimento homogêneo do ponto de vista étnico ou político, mas como algo complexo, além de conferir a seus protagonistas uma dimensão humanizada.
Marco Morel é professor de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e organizador da quinta edição do livro A Revolta da Chibata, de Edmar Morel (Paz e Terra, 2009).
Sílvia Capanema é autora da tese “‘Nós, marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos’: identidades, modernidade e memória na revolta de 1910” (École des Hautes Études en Sciences Sociales, 2009).
Saiba Mais - Bibliografia
MARTINS, Hélio Leôncio. A Revolta dos Marinheiros, 1910. São Paulo: Cia. Editora Nacional/Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1988
NASCIMENTO, Álvaro Pereira. Cidadania, cor e disciplina na revolta dos marinheiros de 1910. Rio de Janeiro: Mauad, 2008.
Saiba Mais - Internet
Projeto Memória – João Cândido e a luta pelos Direitos Humanos
www.projetomemoria.art.br
O outro navegante
Marco Morel e Sílvia Capanema P. de Almeida