O ouvidor contra a Câmara

Phablo Roberto Marchis

  • Clique sobre a imagem para amplia-laA Carta produzida no século XVIII, mesmo em contexto administrativo oficial, não é considerada um documento diplomático, com estrutura e forma fixas – fato que possibilita maior liberdade ao escriba. A escrita tem como principais características a cursividade e a individualidade gráfica, indícios da habilidade do autor do manuscrito. Provavelmente feita pelo escrivão do Senado da Câmara, ela tem formas e traços bastante variados e numerosas ligaduras entre as letras. A inclinação de seu traçado à direita, o seu aspecto corrente com ângulos variáveis e a forma de algumas letras cercam as particularidades da escrita do período abrangido por esse documento.

    A leitura da carta exige o conhecimento de abreviaturas. Desde a abertura, com a forma de tratamento Ilmo. e Exmo. Sr. (Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor), até seu encerramento, com o pedido de que g.de D.s m.s a.s (guarde Deus muitos anos), muitos casos podem ser observados, entre eles, Roiz (Rodriguez), Am.al (Amaral) e Snn.a (Sentença).

    O documento dá a conhecer a data e o lugar em que foi escrito, os responsáveis por sua elaboração e as pessoas envolvidas. São informações que permitem um retrato fiel da língua escrita do século XVIII. Como na época ainda não havia uma ortografia oficial, com normas de como se devia escrever "corretamente", a regularidade gráfica resultava da prática do responsável pelo documento e pelo contexto de produção.

    Uma pessoa que lidava com a escrita no âmbito das funções de seu cargo, além de conhecer as fórmulas de cada tipo de documento, usava com tranquilidade abreviaturas e outras estruturas da língua e, consequentemente, produzia menos variações ao escrever. No manuscrito em questão, salta aos olhos um conjunto de ocorrências bem distantes do modo como hoje escreveríamos: huã, soborno, desvanesse, aseçor, pella, menistro, proferio, excandelloza, nullo, sennado, prizidente, escurpullo, cumum e incluim são exemplos das características individuais de sua escrita.

    Phablo Roberto Marchisé professor da faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e autor deDescaminhos e Dificuldades: leitura de manuscritos do século XVIII(Trilhas Urbanas, 2008).

    Dois casos em um

    As repercussões de um caso de suborno e a anulação de seu processo levaram os vereadores do Senado da Câmara de São Paulo a escrever uma carta ao governador e capitão general. Datado em 22 de julho de 1747, o documento transmite a preocupação sobre o caso, uma vez que o ouvidor geral, depois de uma devassa, tinha sentenciado nulo o trabalho dos vereadores – eles experimentavam "renascida a desordem pela sentença que o dito ministro proferiu".

    O documento não explica as razões que levaram o ouvidor geral a tomar tal atitude, mas os vereadores se viam diante de um escândalo, pela possibilidade de terem sua autoridade retirada pelas ações do ouvidor, que julgou tudo o que tinham feito com “escandalosa paixão”.

    Quando uma situação não se resolvia na instância imediata, era comum a realização de devassas, ato jurídico em que testemunhas eram ouvidas sobre algum caso. Este manuscrito mostra o conflito entre esferas administrativas coloniais, com um crime de suborno como causa.

    Solução do “Decifre”

    [Autor: Poderia verificar se a transcrição está correta?]

    Ilustrissimo e Excelentissimo Senhor

    Quando entendiamos, que o respeito de VossaExcelencia tinha Suprimido a

    perturbaçaõ a que deu principio o Doutor ouvidor Geral Com huã,

    devassa do Soborno que mandou tirar, experimentamos renacida

    a desordem pella Sentença que o dito Menistro proferio na mes-

    Ma materia; chegando Com excandelloza paixaõ atê, a

    julgar nullo tudo ofeito pellos vereadores Joze Rodrigues

    da Sylua orta e Ignacio de Barros Rego, jâ com defe

    rente fundamento Como VossaExcelencia, vera da Copia junta a qual

    desvanesse a ordem livro 1o titulo 67 paragrafo 7. E Costume em todas as

    partes obSeruado, E neste Sennado Como Seue da Certi-

    daõ incluza; E o mais he que o nosso Iuis prizidente Do-

    MingosCoelho Barrados, intimidado pello Seu a-

    seçor falta arremeter a devassa Como VossaExcelencia lhe ordenou

    senaõ, tambem passa a obrigar os prenunciados aLi-

    Vramento; oCazionando ezcurpullo ao povo de

    ser nullo ou naõ, tudo pellos dittos vereadores feito e in

    pucibellitandonosCom o Seu desmaziado resseyo a darmos

    Conta a SuaMagestade Como devemos de varias materias que inclu-

    im o dito Menistro eobem Cumum. A pessoa de VossaExcelencia guarde

    Deus muitos annos. Saõ Paulo emCamara 22 de Julho de1747

                                                               DeVossaExcelencia

    Obedientes Subditos

    Jozé Rodriguez dasylva eorta

    Ignacio de Barros Rego

    Bento do Amaral da Sylva

    Saluador DeLima

     

    Confira a versão em linguagem atual e o documento em alta resolução no site www.rhbn.com.br

     

    Para o site:

     

    Transcrição modernizada:

    Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor

                Quando entendíamos que o respeito de Vossa Excelência tinha suprimido a perturbação a que deu princípio o Doutor Ouvidor Geral com uma devassa do suborno que mandou tirar, experimentamos renascida perturbação a desordem pela sentença que o dito ministro proferiu na mesma matéria, chegando com escandalosa paixão até a julgar nulo tudo o feito pelos vereadores José Rodrigues da Silva Horta e Ignácio de Barros Rego. Já com diferente fundamento como Vossa Excelência verá da cópia junta a qual desvanece a ordem do livro 1o, título 67, parágrafo 7. É costume em todas as partes observadas e neste Senado como se vê da certidão inclusa.

                E o mais é que o nosso juiz presidente Domingos Coelho Barrados, intimidado pelo seu assessor, falta remeter a devassa como Vossa Excelência lhe ordenou, senão também passa a obrigar os pronunciados a livramento, ocasionando escrúpulo ao povo. De ser nulo ou não, tudo pelos ditos vereadores feito e impossibilitando-nos com o seu demasiado receio a darmos conta a Sua Majestade como devemos de várias matérias que incluem o dito ministro e o bem comum. A pessoa de Vossa Excelência guarde Deus muitos anos. São Paulo, em Câmara, 22 de Julho de 1747

                                                               De Vossa Excelência, obedientes Súditos

    José Rodrigues da Silva Horta

    Ignácio de Barros Rego

    Bento do Amaral da Silva

    Salvador de Lima