O país do futuro

Beatriz Helena Domingues

  • Durante anos, a imagem que os Estados Unidos tinham da América Latina era a de uma terra exótica com um desenvolvimento econômico obsoleto. Essa tese era defendida por uma série de publicações do país, acadêmicas ou não. Hoje em dia, muito pelo contrário, especialistas de diversas nacionalidades reconhecem que nações como o Brasil têm todo o potencial para figurar entre as mais desenvolvidas do planeta nos próximos anos. Mas havia quem já acreditasse nessa tendência na segunda metade do século XX e a transmitisse para o mundo acadêmico dos EUA.

    O historiador norte-americano Richard Morse (1922-2001), por exemplo, era um dos que acreditavam que havia um continente sul-americano que, sem deixar de se desenvolver, optou por se civilizar de um jeito diferente. Morse jamais deixou de perceber algumas das deformidades no desenvolvimento de seu país e de admitir que a América Latina não era tão selvagem e grotesca. Essa abordagem faz parte do seu livro mais conhecido, O espelho de Próspero – Cultura e ideias nas Américas, e foi considerada indecorosa pelos conterrâneos do autor. Tanto que o estudo nunca foi lançado em inglês, embora tivesse sido publicado em espanhol (1982) e em português (1988).

    Antes disso, grande parte da literatura brasileira e hispano-americana sobre a formação do povo latino defendia pontos de vista coincidentes, como o de que o subdesenvolvimento dos sul-americanos se devia à colonização feita pelos países ibéricos. Exclamações de “como teria sido diferente a nossa história se tivéssemos sido colonizados pelos ingleses!” não paravam de pipocar dentro e fora dos meios acadêmicos. Por tudo isso, foi espantoso ver um norte-americano criticando profundamente o american way of life e mostrando que as sociedades ibéricas eram civilizações sofisticadas e muito mais abertas e preparadas para encontros entre culturas do que a inglesa.

    A carreira de Morse se pautou por não ser nada convencional. Seu primeiro trabalho publicado foi um texto literário, o conto The Narrowest Street (1945), influenciado pela primeira viagem que fez à América Latina e que o levou a Cuba. Foi onde teve início, segundo ele, “sua paixão pela cultura ibérica no Novo Mundo”. Pouco depois, reverberando o clima de aproximação cultural e econômica que marcou as relações entre os Estados Unidos e o Brasil durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), seu foco passou a ser a América do Sul, mais especificamente a formação histórica da cidade que lhe parecia a mais intrigante do continente: São Paulo. Naquela época, a profissão de latino-americanista ainda não existia. Foi criada somente após a Revolução Cubana, nos anos 1960, graças aos incentivos fornecidos pelo governo e por fundações norte-americanas àqueles interessados em estudar a então estratégica região ao sul do Rio Grande – que servia de fronteira entre o México e o estado do Texas.

    Parte do mérito do trabalho de Morse sobre os brasileiros e os hispano-americanos se deve ao fato de ele ter mergulhado na cultura latina sem perder o “olhar estrangeiro”, tão enriquecedor nesse tipo de análise. O historiador se olhou no espelho da América Ibérica, digeriu essa cultura como sugeria a antropofagia modernista – abrindo-se para as mais diversas influências e fazendo sua própria leitura delas – e, como um canibal, se alimentou dessa experiência. Ele chegou a comparar os prognósticos que fez para o Brasil com as previsões do escritor francês Alexis de Tocqueville (1805-1859) para o seu país em meados do século XIX. Entre outras antevisões, Tocqueville afirmara que EUA e Rússia seriam as duas grandes potências do século XX. Morse, por sua vez, acreditava que o Brasil seria uma nação bastante desenvolvida no século XXI.

    O historiador começou a estabelecer uma relação mais afetuosa com o país – e com o resto da América Latina – quando passou a visitá-lo com mais frequência ao longo da década de 1940. Ele se mostrou muito diferente da maioria dos norte-americanos que estudavam o Brasil naquele tempo, pois tentava estabelecer suas teorias baseado em informações amplas e diferenciadas. Em uma entrevista concedida à socióloga Helena Bomeny em 1988, ele disse que quando aterrissou em São Paulo pela segunda vez, em 1947, queria escrever um livro e não uma tese, pois não desejava entrar para o mundo acadêmico. Sua questão era decifrar como e por que aquela cidade enorme, que todo mundo dizia ser a Chicago da América do Sul, havia surgido e crescido, e que forças econômicas teriam eliminado de sua paisagem quase todos os sinais de uma tradição arquitetônica anterior.

    A vinda à capital paulista forneceu a Morse a base necessária para que escrevesse seu primeiro livro sobre o Brasil, História da formação de São Paulo, publicado em inglês em 1958 e em português em 1970. Ele não sentia apenas a necessidade de conhecer sua história e sua configuração urbana. Precisava senti-la, conhecê-la com a razão e o coração. As amizades que Morse fez na Universidade de São Paulo (USP) foram fundamentais nesse processo, embora elas não se restringissem ao meio acadêmico. Foi muito salutar o convívio que ele teve com intelectuais como Antonio Candido, Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) e Florestan Fernandes (1920-1995), considerados pelo próprio Morse como seus mentores.  

    Para Antonio Candido, aquele WASP – sigla que em inglês significa “branco, anglo-saxão e protestante” – era autêntico, despretensioso, e tinha a mente aberta para se identificar humanamente com o mundo ibero-americano. Morse era um intelectual que trabalhava com a tenacidade típica dos norte-americanos, e estava profundamente empenhado em compreender – e não apenas em conhecer – a história, a cultura, as linguagens, os valores e as ideias da América Latina. Ele não gostava só de fazer amigos e cultivá-los. Também costumava apresentar seus colegas uns aos outros, para que se tornassem amigos. Aqueles que puderam encontrá-lo em sua própria terra constataram que ele retribuía na mesma moeda.

    Quando voltou aos EUA nos anos 1950, Morse se casou com a bailarina e cantora haitiana Emerante de Pradines, com a qual teve um filho e uma filha. Mais de uma década depois, no início dos anos 1970, ele voltou ao Brasil para outra longa temporada e acabou fixando residência com a família no Leblon, no Rio de Janeiro, estabelecendo-se como presidente da Fundação Ford, instituição que, naquele momento, tomava importantes decisões sobre distribuição de recursos para pesquisadores norte-americanos interessados em estudar a América Latina. Foi nessa época que sua amizade com Sérgio Buarque de Holanda se aprofundou. Os dois passavam praticamente todos os fins de semana juntos, desfrutando várias garrafas de uísque, comida de ótima qualidade, e gastavam o tempo entabulando longas e frutíferas conversas e ouvindo música. Morse gostava de dizer que, para ele, Chico Buarque era apenas o filho do autor de Raízes do Brasil – talvez para contrapor-se à ironia de Sérgio, que se apresentava como o “pai do Chico”.

    Durante as celebrações dos 70 anos de Morse, em 1992, o Brasil e os EUA organizaram seminários para discutir seu legado, pouco depois do lançamento de A volta de McLuhnaíma – Cinco estudos solenes e uma brincadeira séria (1990). Seu último ensaio, The Multiverse of Latin America Identity, 1920-1970, uma preciosidade, foi publicado em 1995 pela Cambridge History of Latin America, e deve ser traduzida para o português em breve pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Richard Morse morreu em Porto Príncipe, no Haiti, em abril de 2001. Seu filho, batizado com o mesmo nome do pai, lidera uma banda de rock em Porto Príncipe. O intenso contato com o Haiti é outro ponto a ser salientado na relação deste WASP com a cultura ibero-americana. Quando “encontrou” sua identidade latino-americana, Morse em muito contribuiu para que nós também passássemos a vê-la com outros olhos.

    Beatriz Helena Domingues é professora da Universidade Federal de Juiz de Fora e organizadora e coautora do livro O código Morse. Ensaios sobre Richard Morse (UFMG, 2010).



    Saiba Mais - Bibliografia

    BOMENY, Helena. (org.). Um americano intranquilo. Rio de Janeiro: FGV-CPDOC, 1992.

    MORSE, Richard M. A volta de McLuhanaíma – Cinco estudos solenes e uma brincadeira séria. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

    MORSE, Richard M. O espelho de Próspero: Cultura e ideias nas Américas. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.