O paraíso perdido da França Antártica

Nelson Cantarino

  • Apesar da degradação, a baía de Guanabara e seu entorno continuam sendo um dos principais cartões postais do país. Há exatos 450 anos, esse paraíso tropical foi palco de sangrentos combates entre franceses e portugueses e índios tamoios e temiminós. Personagens envolvidos nessa luta marcaram não apenas a história do Brasil, mas a visão dos europeus sobre a América, caso do frei franciscano André Thevet, cosmógrafo responsável pelas xilogravuras que retrataram pela primeira vez os indígenas, plantas e animais do Brasil, servindo de modelo para representação de todo o continente americano do período.

    No contexto das disputas políticas definido pelo Tratado de Tordesilhas (1494), acordo que dividiu o território do Novo Mundo entre as Coroas portuguesa e espanhola, a aventura francesa na baía de Guanabara foi basicamente uma atividade de corso, ou seja, um movimento de guerra voltado para o ataque do tráfego marítimo de inimigos e suas instalações. Os inimigos, no caso, eram os portugueses. 

    A expedição francesa foi liderada por um militar experiente, o vice-almirante Nicolas Durand de Villegaignon (1510-1572), que contava com o apoio do monarca Henrique II (1519-1559) e com a benção do líder da facção protestante da Corte de Paris, o todo-poderoso Gaspard de Coligny (1519-1572), que sonhava com uma colônia onde os protestantes franceses, conhecidos como huguenotes, viveriam livres das perseguições religiosas. Villegaignon e sua pequena esquadra chegaram ao Rio de Janeiro nos últimos meses de 1555, fundando a França Antártica, um posto dentro do território da América portuguesa.

  • Estabeleceram-se na ilha de Seregipe, hoje conhecida pelo nome do vice-almirante francês e sede da Escola Naval, próxima ao aeroporto Santos Dumont. Ali foi construído o Forte de Coligny, base francesa fincada para exploração do território e de suas riquezas.

    Mesmo contando com a adesão de cerca de quinhentos índios tamoios, os líderes franceses solicitaram reforços e a vinda de mais protestantes para auxiliar na construção da nova colônia. Até então, as disputas teológicas entre os fiéis católicos e os huguenotes não haviam se transformado no conflito que marcaria as guerras religiosas que tomaram a França entre 1562 e 1598.

    O paraíso brasileiro, no entanto, mudava de figura e a adaptação dos franceses ao novo território era dificultada pelas doenças, clima, alimentação e pelo trabalho excessivo da construção do forte que garantiria a posse e o rigor no contato com os nativos. Tudo isso contribuiu para tornar a experiência insuportável para maioria. Em pouco tempo, a insatisfação levou à disputa religiosa: os fiéis do credo reformado foram perseguidos e alguns executados.

    A Biblioteca Nacional possui em sua Divisão de Obras Raras três surpreendentes opúsculos, pequenos impressos de poucas páginas, relacionados à polêmica em torno da atuação de Villegaignon nesses episódios. Escritos em 1561 e pertencentes à Biblioteca Real – coleção que veio para o Brasil junto com a Corte portuguesa em 1808 –, esses documentos serviram como peça de propaganda na disputa teológica entre católicos e protestantes na França – defendendo um lado ou outro dessa disputa.

  • Exemplares raríssimos de edições que se perderam no decorrer dos séculos, suas páginas trazem uma amostra da intolerância religiosa que levaria os franceses a esquecer seus inimigos portugueses e a lutarem entre si na Europa.  O mais conhecido desses documentos é de autoria do reverendo protestante Pierre Richer, que considerava a tolerância religiosa encontrada no Brasil uma forma de estimular investimentos de comerciantes huguenotes na empreitada atlântica. Richer relata o conflito teológico em torno da eucaristia, para os católicos, a real transubstanciação do corpo de Cristo, para os protestantes, um simples simbolismo. Os outros dois, de autores anônimos e simpatizantes do catolicismo, defendem a sinceridade e a tolerância de Villegaignon, que regressaria à Europa para explicar os conturbados acontecimentos.

    O destino da França Antártica, porém, já estava traçado. Em 15 de março de 1560, na ausência do vice-almirante francês, o governador-geral do Brasil Mem de Sá (1504-1572) liderou um ataque avassalador ao Forte de Coligny. Os sobreviventes franceses ainda resistiriam espalhados pelas matas por mais sete anos sem sucesso. Estava marcado assim o fim da colônia francesa e do sonho de tolerância no Novo Mundo.