O poder das gírias

Claudia Bojunga

  • Recentemente, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, disse que o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva é “o cara”. Em outro episódio, no final do ano passado, Lula, ao discursar sobre a importância do otimismo diante da crise econômica, afirmou: “Se um médico vai falar com um doente, o que deve dizer? Que vai melhorar, que vai sair dessa, ou deve dizer que o cara ‘sifu’?”

    Ora, se até chefe de Estado recorre às gírias, que dirá o resto da população. “Hoje há um predomínio desta fala. A hegemonia da mídia falada e visual causou o abandono da forma escrita. São poucos os leitores. E a gíria é um segmento do coloquial”, explica o escritor e professor de Letras da Universidade Estácio de Sá, Deonísio da Silva.

    “Se em vez de dizer ‘Here is my man’ Obama tivesse afirmado que Lula é um dos líderes mais populares do mundo, não teria repercutido tanto”, observa o cientista político Marcio Malta, também conhecido como o cartunista Nico. “Quando Obama usou a expressão ‘Here is my man’, apropriou-se de uma gíria de gueto para demonstrar pertencimento, como se estivesse sinalizando ‘olha, ele é um dos meus’,” acrescentou.

    Destaque no noticiário brasileiro, a fala do presidente brasileiro também recebeu muitos comentários, mas em tom de crítica, já que “sifu” é a corruptela de um palavrão. Mas Malta não vê o uso da expressão como inapropriada: “Lula discursava para uma plateia de artistas que normalmente já é mais informal. Sabia o que estava fazendo”.

    Deonísio concorda: “Quando o presidente Lula usa gírias, quer cativar o público, comunicar-se com ele. Neste caso, o ‘sifu’ já perdeu a conotação do palavrão que deu origem à expressão; passou a ter o sentido simplesmente de ‘se prejudicar’”.

    Uma curiosidade: o termo tornou-se conhecido em todo o país graças ao jornal O Pasquim, que fazia disputas internas entre seus jornalistas para criar eufemismos de palavrões que pudessem fugir à censura do governo militar, na época da ditadura. “Assim como o Pasquim fez com o jornalismo, o presidente Lula tirou o paletó e a gravata dos discursos presidenciais”, diz Malta. O problema é que suas licenças poéticas nem sempre agradam.

    Polêmicas à parte, é fato que não há quem não empregue de vez em quando uma giriazinha, seja da mais moderninha (ou hype) à mais antiga. Mas, afinal, qual é a definição de gíria? “Para a ampla maioria da população, que não conhece a linguagem formal, a gíria é uma alternativa. É usada principalmente por aqueles que não tiveram a oportunidade de conhecer a beleza e a riqueza da língua portuguesa. Trata-se de um elemento que faz parte da sociedade. Quem tem estudo e fala gíria, é por modismo,” comenta o jornalista e autor do Dicionário de gíria, João Bosco Serra e Gurgel. “Hoje o universo de gírias está muito maior porque o padrão escolar caiu. Então, ela é reflexo de uma simplificação da linguagem”.

    Mas isso não significa que esse recurso seja nocivo ao português e deva ser completamente abolido do dia a dia. É consenso entre especialistas que a gíria não empobrece a língua. “Realmente, o dominante de quem usa a gíria é de quem não tem acesso à norma culta, já que não é necessário ir à escola para aprendê-la. Mas há também quem conhece a linguagem formal e usa a gíria para ser mais bem entendido, por opção”. assinala Deonísio da Silva. “Além disso, nem sempre ela nasce de uma necessidade; muitas vezes está ligada ao prazer da invenção”, completa.

    A origem da gíria está ligada ao mesmo tempo a uma forma de identificação e a uma comunicação exclusiva de determinados grupos. Este sentido vem da origem etimológica do vocábulo: “A palavra vem de jerga, do espanhol, que possivelmente vem do latino garrire, que significa tagarelar. Começou com os fabricantes de cesto e aqueles que trabalhavam nas coberturas dos telhados e usavam uma linguagem diferente entre si”.

    Como as gírias ultrapassam as fronteiras dos diferentes grupos e lugares onde surgem para serem incorporadas ao dicionário? Assim, quando um surfista quer comentar com outro que a praia tem gente demais, diz que “está o maior crowd”. E o funkeiro, em vez de afirmar que está chateado ou preocupado, fala que está “bolado”, uma expressão que já está mais do que difundida.

    “É a necessidade de construir um código de comunicação. Depois que rompe o casulo, se espalha. Por isso, os regionalismos são os maiores tributários das gírias”, afirma Serra e Gurgel. Isto acontece devido ao boca a boca, é claro, mas em uma escala maior graças aos meios de comunicação. “O Rio, por exemplo, é um grande vetor de gírias, já que muitas novelas, entre outros programas, são produzidas na cidade, onde é a sede da Rede Globo”, observa o autor do Dicionário de gíria. Atualmente, com a agilidade que a Internet e a televisão dão à circulação de informações, este fenômeno é cada vez mais rápido. Assim, a expressão “pede pra sair”, como sinônimo de “desista!”, que o capitão Nascimento, personagem do filme “Tropa de Elite” (2007) tanto repete, virou febre em todo o país. Uma moda que começou antes mesmo da estreia do filme, já que milhares de pessoas tiveram acesso a cópias piratas.   

    Mas nem sempre houve, como hoje, uma difusão a jato das gírias. Nos anos 1920 e 1930, quem falava gíria no Rio de Janeiro eram os malandros. Eles criaram os seus próprios termos para se defender da polícia, expressões que não deixaram o morro até os sambistas as incluírem em suas letras de músicas. Como escreveu o compositor Noel Rosa (1910-1937) em Não tem tradução: “A gíria que o nosso morro criou/ Bem cedo a cidade aceitou e usou”.  Para o sambista Moreira da Silva (1902-2000), por exemplo, vagabundo era “vagulino”; fugir correndo era “desguiar na carreira”, o equivalente hoje a “vazar”, e delator era “entregador”, entre muitos outros. “Quando eu era pequeno, ouvia o programa do Adelzon Alves no rádio; assim entrei em contato com estes termos pela primeira vez”, afirma Serra e Gurgel.

    Talvez tenha sido desta época, conta ele, o surgimento de seu interesse pelo assunto. Ele acabou elaborando um dicionário com 33 mil verbetes, e está na sua oitava edição. Há gírias de diferentes épocas e até de outros países que falam português, como Angola e Moçambique. O dicionarista se considera “um catador das palavras no lixo da língua”, mas admite que não se atreve a se aventurar na linguagem dos rappers e da Internet, que seria um mundo à parte.   

    Na rede, termos são criados à medida que as novidades tecnológicas vão aparecendo. Quem não estiver atento (ou antenado) fica para trás. Com o badalado Twitter, surgiu o verbo “twittar”, que significa publicar ou postar uma mensagem no microblog. O site Google, por sua vez, tornou-se tão popular, que utilizá-lo para fazer buscas virou “googlar”.  As gírias da Internet costumam surgir por derivações de palavras em inglês, como “deletar” (delete, apagar em português).

    As formas de criar uma gíria são as mais variadas. Pode haver, por exemplo, uma abreviação que transforme o comunista em “comuna”. As alusões também são um recurso comum: quando uma pessoa está na fossa, está deprimida. É recorrente também que haja uma alteração para um sentido quase oposto ao que está no dicionário. Assim, quando um adolescente afirma que uma festa foi “sinistra”, encontra um olhar interrogativo dos mais velhos que desconhecem a expressão. Na gíria, “sinistro” tem uma conotação positiva, mas no dicionário é sinônimo de algo temível, ameaçador.

    Não há nada errado em seguir o protocolo, melhor dizendo, a norma culta da língua. Mas é impossível frear seu instrumento de regeneração que é a gíria. Ela já chegou à Casa Branca e ao Palácio da Alvorada, e é cada vez mais falada pela população.