O poeta vai ao circo

Silvia Cristina Martins de Souza

  • A estréia do Circo Olímpico no Rio de Janeiro foi um sucesso. O público acorria em número cada vez maior ao espetáculo, dirigido por um certo Sr. Guilhaume. As apresentações passaram a acontecer duas vezes por dia – às 4 da tarde e às 7 e meia da noite –, e os artistas ganhavam fama nas ruas da cidade.

    O fenômeno foi registrado pelo jornal Correio Mercantil na edição do dia 21 de outubro de 1849. “Pedro Miller, egípcio ao que se diz, tem adquirido grande aura e o seu nome vai sendo conhecido até por aqueles que não têm freqüentado o circo (...) Guilhaume pai fez debutar o seu cavalo Sultão, que fez naquela noite mais conquistas, que não faria a melhor moça no decurso de um ano”, escreveu o colunista anônimo responsável pelo folhetim intitulado Revista Semanal. E ele prometia: “Voltaremos ao circo, e falaremos mais de espaço sobre ele”.

    As referências ao Circo Olímpico devem ter surpreendido os leitores do folhetim. A maioria dos folhetinistas dramáticos – como eram chamados aqueles que faziam crítica teatral – não dava atenção ao que ocorria nos picadeiros. Os circos eram vistos como divertimentos “menores”, sem comprometimento com a arte. E embora os críticos reconhecessem que os fluminenses tinham uma especial predileção por tais espetáculos, consideravam este gosto uma prova de falta de civilização.

    A surpresa seria ainda maior se soubessem quem estava por trás do folhetim semanal anônimo, publicado durante quase um ano. Era Antônio Gonçalves Dias (1823-1864). Sabe-se que ele foi autor de poemas e dramas românticos, além de ter integrado o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e o Conservatório Dramático Brasileiro e lecionado no Colégio Pedro II. Em todas estas atividades, manteve-se fiel ao objetivo de construir uma imagem civilizada para o país. Gonçalves Dias alinhava-se a outros escritores envolvidos na mesma “missão”: prover o Brasil de uma literatura original e digna de ser equiparada à dos países europeus. Sua atuação oculta no folhetim Revista Semanal descortina uma feição diferente.

    Quando chegou ao Rio, em 1846, vindo de São Luís do Maranhão, passava os dias lendo na Biblioteca Real e remoendo a idéia de escrever uma série de poemas históricos sobre sua terra natal. O empenho em conquistar um lugar no mundo das letras não o privava de desfrutar momentos de lazer. Ao contrário, ele parece ter temperado bem as horas de introspecção e estudo com os divertimentos oferecidos pelo Tívoli, situado no Campo da Aclamação (atual Praça da República), e na Barraca do Teles, tradicionalmente montada por ocasião da festa do Divino Espírito Santo.

    Ponto de encontro dos alunos das escolas de ensino superior, o Tívoli reunia um público bastante eclético, que, ao preço módico e único de dois mil réis, participava dos seus bailes mascarados oferecidos aos sábados, ou gratuitamente aos domingos e nos dias santos. Seus espetáculos contavam com números de pantomima, de assalto de armas e de fogos de artifício, bem parecidos com os oferecidos pelos circos.

    A Barraca do Teles também reunia um público heterogêneo, com ingressos ao preço único de 500 réis. Ali se representavam comédias, teatrinho de bonecos, números de dança, como lundus, miudinho e modinhas, além dos de ginástica, imitações e mágicas. Sua platéia era formada não só por famílias, homens livres ricos e pobres ou escravos que acompanhavam seus senhores, mas também pelos nomes mais representativos da primeira geração de românticos brasileiros.

    O trânsito pela cultura das ruas e das festas populares parece ter influenciado pelo menos uma parte da produção literária de Gonçalves Dias: seus folhetins. A Revista Semanal é pródiga em informações sobre como funcionavam o circo e o teatro da época. Revela, por exemplo, a existência de um mesmo público nas diferentes apresentações artísticas da cidade. “Nosso público que freqüenta os teatros não é muito numeroso. No de São Januário ou no de São Pedro, no espetáculo lírico, dramático ou eqüestre, as caras são pela maior parte as mesmas nos camarotes, nas cadeiras e na platéia”, escreveu.

    Além desse raro registro sobre o gosto eclético do público, Gonçalves Dias aponta para a concorrência acirrada entre estes tipos de espetáculo. Hoje muito afastados, no século XIX eles disputavam palmo a palmo a preferência das platéias e até os mesmos espaços de apresentação. Não custa lembrar as freqüentes idas do imperador D. Pedro II ao circo, acompanhado da mulher, Tereza Cristina. Foi o que aconteceu em 1862, quando assistiram a dois espetáculos da companhia norte-americana do Circo Grande Oceano, e em 1876, quando o Circo Chiarini esteve em temporada no Rio e apresentou-se no Imperial Teatro Pedro II (na atual Praça Tiradentes). A própria arquitetura do teatro do imperador demonstra o fim para o qual ele foi concebido: tinha um palco móvel que se transformava em picadeiro e enormes entradas que permitiam a passagem de animais de grande porte, jaulas e carruagens.

    Na Revista Semanal, Gonçalves Dias informou aos leitores que o Circo Olímpico atraiu tantos espectadores em sua estréia que o teatro de São Januário teve que adiar a apresentação de uma companhia lírica recém-contratada na Europa, programada para o mesmo dia, pois ficara deserto. Esta disputa por público não era bem-vista pelos críticos e empresários teatrais. João Caetano (1808-1863), o empresário mais famoso da época, foi um dos que se colocaram frontalmente contra os circos, a ponto de propor que fosse criada uma legislação proibindo as companhias circenses de apresentarem espetáculos nos mesmos dias que os teatros. Segundo ele, o circo contribuía para a decadência do teatro e para a degeneração do gosto das platéias. Souza Bastos, empresário teatral português que visitou o Rio diversas vezes ao longo do século XIX, também considerava a concorrência do circo bastante prejudicial, impedindo que o teatro aumentasse o preço dos seus bilhetes, medida necessária devido aos altos custos. Por sua vez, os circos podiam manter boas receitas com preços menores.

    Em seu folhetim anônimo, Gonçalves Dias mostrava discordar dessas críticas. No dia 4 de novembro, quando voltou a tomar de sua pena para falar sobre a empresa do Sr. Guilhaume, foi novamente para elogiar o Circo Olímpico: “A pantomima a pé ou a infantaria a cavalo é uma farsa doida, barulhenta, que faz rir às gargalhadas; é o elemento clown junto ao elemento farsa, produzindo um curioso espetáculo. O protagonista, o cômico Massanti, diga-se de passagem, é maçante só no nome”.

    Pantomima era a designação dada às representações teatrais ocorridas nos circos-teatro tão comuns naquela época. Elas conjugavam números de acrobacia, “funambulismo” (equilibrismo), mágica, farsa, música e exibições de animais. Além da presença de cavalos, as pantomimas apresentavam outro elemento de grande apelo popular: os niais, tolos ou clowns, que invadiam o palco nos momentos de maior dramaticidade e lacrimejar das platéias, levando-as a explodir em risos.

    Aquela temporada do Circo Olímpico no Rio durou quatro meses. Durante esse período, suas arquibancadas mantiveram-se cheias, para desespero dos empresários e dos críticos teatrais. Gonçalves Dias compareceu a vários daqueles espetáculos. E, ao que tudo indica, não foi só por dever profissional.

    O circo do Sr. Guilhaume retornaria à cidade em outras duas ocasiões: 1864 e 1876. Mas o poeta não estava mais aqui para conferir suas novidades. Faleceu no naufrágio do navio Ville de Boulogne, ocorrido na costa maranhense em 1864.

    Gonçalves Dias pode ser considerado um caso exemplar de literato dedicado ao papel que acreditava exercer na sociedade – um papel civilizador – e ao mesmo tempo seduzido e transitando por outros espaços, que o levavam a fazer concessões às preferências de seu público. Preferências das quais ele próprio parecia compartilhar.

    Silvia Cristina Martins de Souza é professora da Universidade Estadual de Londrina e autora de As noites do Ginásio: teatro e tensões culturais na Corte – 1832/1868 (Editora Unicamp, 2002).


    Saiba Mais - Bibliografia:

    ABREU, Martha, O Império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro (1830-1900). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

    CHALHOUB, Sidney, NEVES, Margarida de Souza e PEREIRA, Leonardo A. M. (orgs.) História em cousas miúdas: capítulos de história social da crônica no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2005.

    PEREIRA, Lúcia Miguel, A vida de Gonçalves Dias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1943.

    Nobres folhetins

    O que hoje se conhece por crônica, antigamente se chamava folhetim. Isto é, um artigo publicado no rodapé dos jornais tratando de política, teatro, música, literatura, assuntos variados, ou apresentado romances “em fatias”. Naquele espaço atuavam literatos renomados e também aqueles que aspiravam a viver da literatura, pois o jornalismo era considerado, no Brasil do século XIX, uma porta de entrada para vôos mais altos no mundo das letras e no da política. O estilo leve e ágil próprio do gênero, que procurava estabelecer com o leitor um diálogo bem-humorado e aparentemente descompromissado sobre assuntos do cotidiano, fez com que, por muito tempo, os folhetins e as crônicas fossem considerados um gênero menor, tanto por historiadores quanto por estudiosos da literatura. Mas isso vem mudando. Para os que os escreveram naquela época, o folhetim era considerado espaço nobre, pois lhes oferecia a oportunidade ímpar de informar e formar seus leitores. Nos folhetins, autores como José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, Machado de Assis e Quintino Bocaiúva testavam recursos de linguagem para organizar as transições entre assuntos diversos, aprendendo a difícil arte de controlar leitores de atenção arisca e gostos diversificados. No rodapé dos jornais, acertavam o tom que estaria presente em muitas das suas produções literárias posteriores.