“Você ou é um precursor, que a crítica literária mais tarde elevará às culminâncias, ou um louco banal, um tarado”. As palavras de Veiga Miranda, sob o impacto da primeira leitura de A mulher carioca aos 22 anos, foram duplamente proféticas quanto ao destino de seu amigo, o escritor João de Minas.
Sua trajetória cheia de reviravoltas lembra a dos personagens fantasiosos que criou. Nascido em Ouro Preto em 1896, seu nome era Ariosto Palombo, e assim era conhecido nos jornais e revistas de Belo Horizonte até 1919. O talento e os modos excêntricos já chamavam a atenção de colegas. Depois adotou o pseudônimo com o qual assinaria sua produção literária, uma clara homenagem a João do Rio (1881-1921).
Mas, ao contrário do cronista dos tipos urbanos cariocas, em sua obra de estreia João de Minas voltou os olhos para bem longe da cidade. Jantando um Defunto (1929) nasceu de uma série de “reportagens” enviadas por ele desde 1927 para publicação no jornal O Paiz, do Rio de Janeiro. O livro contém, segundo o subtítulo, “a mais horripilante e verdadeira descrição dos crimes da Revolução”, na passagem da Coluna Prestes pelos sertões de Mato Grosso, Goiás e Minas Gerais.
O sucesso foi imediato. Na época, produzir um testemunho diretamente do sertão era uma estratégia de autenticidade elogiável, em oposição ao chamado “sertanismo de gabinete”. O clamor para que se conhecesse a “realidade nacional” vinha desde fins do século XIX, ganhou impulso durante a Primeira Guerra Mundial e tornou-se um mantra nos anos 1920 e 30. O mote da “redescoberta do Brasil” pairava sobre a intelectualidade, e João de Minas inseriu-se nessa tendência ao permear o livro de descrições da paisagem e de tipos populares. E não parou aí: o relato da vida e das crenças dos sertanejos era recheado de eventos fantásticos e milagrosos, justificados por hipóteses espíritas também em voga na época.Para completar, o assunto principal do livro tinha potencial para gerar muita polêmica. Intensificavam-se as críticas à legitimidade política da oligarquia dos Partidos Republicanos Paulista (PRP) e Mineiro (PRM) – que comandavam o país, revezando-se na Presidência da República. A Coluna Prestes (1924-1927) foi talvez o maior movimento de contestação ao regime, mobilizando as aspirações de mudanças de inúmeros intelectuais na imprensa. As reportagens e o livro Jantando um Defunto eram uma reação a essa onda, afinados com o discurso do governo e dos intelectuais mais conservadores e legalistas.
O reconhecimento literário veio em elogios de escritores como Medeiros e Albuquerque, Coelho Neto e Menotti del Picchia. E consolidou-se na louvação rasgada de Humberto de Campos (1886-1934), membro da Academia Brasileira de Letras, bastante apreciado pelo grande público. Segundo o imortal, o jovem escritor equiparava-se em estilo ao autor de Os Sertões, mas levava sobre Euclides da Cunha uma vantagem: “Impressiona a imaginação de modo mais vivo”.
Quando desembarcou no Rio de Janeiro, em 1930, foi direto para a redação de O Paiz, o mais governista dos órgãos de imprensa, e naquele ano lançou mais dois livros. Um deles, Farras com o demônio, mantinha-se fiel ao filão sertanista, narrando uma viagem ao Araguaia em que acompanhou personalidades políticas goianas. Caiu nas graças de Monteiro Lobato (1882-1948), que chegou a intermediar a publicação de uma continuação pela Companhia Editora Nacional, projeto que não se concretizou. “Você só tem uma explicação: desnorteante! Há nesse livro coisas espantosas, lances de gênio, faíscas de humorismo que tonteiam”, empolgou-se o escritor.
O outro livro de 1930 relacionava-se ao motivo que levou João de Minas à capital da República: as eleições presidenciais. Militante do PRP, João de Minas estava engajado na defesa do governo oligárquico, e expressa com vigor sua posição em Sangue de Ilusões. A obra é um ataque desbocado ao governador de Minas Gerais, Antonio Carlos Ribeiro de Andrada e, indiretamente, ao candidato de oposição à Presidência, Getulio Vargas. A vitória coube ao governista Júlio Prestes, mas ele não chegou a tomar posse por causa da irrupção da “Revolução” de Vargas, em outubro. Com ela, João de Minas quase perdeu o pescoço, sendo obrigado a fugir para a Argentina.
O escritor que voltou do exílio três anos depois era um homem ressentido com os rumos do país. E isso se refletiu numa radical mudança em suas temáticas. Entre 1934 e 1935, ele lançou uma coleção de livros eróticos que seria intitulada Revolução Sexual Brasileira. Acompanhava os temas quentes do momento: começou pelos ideais e vícios cosmopolitas do Rio de Janeiro em A Mulher Carioca aos 22 Anos, passou pela questão proletária paulistana em A Datilógrafa Loura, tratou da Revolução Constitucionalista de 1932 em Uma Mulher... Mulher! e abordou, numa época de popularização do espiritismo e do esoterismo, o além-túmulo numa paródia à Divina Comédia intitulada A Prostituta do Céu.
O enredo das histórias é um só: mulheres bonitas que enfrentam as agruras da vida e do amor, sofrem assédios despudorados, passam por dificuldades financeiras, levam golpes do baú e são vítimas de todo tipo de vigarice. Os ideais românticos e cristãos das protagonistas contrastam com a realidade repleta de pessoas corruptas, hipócritas e sexualmente devassas. Com uma escrita leve e bem-humorada, o autor é mordaz em sua crítica à modernização dos costumes, numa época em que a mulher da alta sociedade ganhava o espaço público nas metrópoles.
Ao qualificar sua nova literatura como “sexual sociológica”, não perdeu de vista as questões políticas – mesmo que maquiadas pela ficção. No prefácio do livro A mulher carioca aos 22 anos, o autor explicita seu recado político por trás dos temas escandalosos: “Este livro é uma ponte entre a República Velha e a Nova. Neste sentido, é o único. Este romance romanceia, mudando os nomes dos bois, os últimos tempos da República do PRP. E passa para os primeiros tempos da República Nova, ao redor de um moço bonito, que acaba interventor de Alagoas. O leitor que ler este livro com a competente malícia, compreenderá logo o movimento das máscaras. E decifrará os heróis e a heroína. Porque eles estão vivos por aí”.
O alvo agora eram Getulio Vargas e a “ditadura”, o modo como João de Minas e a oposição qualificavam o regime oriundo da Revolução de 30. Mas, enquanto a maioria dos intelectuais se debatia com diferentes projetos para o Brasil, João de Minas assumia uma postura comum a muitos humoristas da época: não tinha projeto algum, desconfiando da própria ideia de nação. Como disse uma de suas personagens ao propor o lucrativo ramo da prostituição à linda protagonista de A Datilógrafa Loura: “Uma das mercadorias mais vendáveis é a mercadoria invisível, inexistente, irreal. Tudo o que é pura fantasia, mentira absoluta, vende-se formidavelmente. A virtude, a caridade, a salvação do Estado, o bem público, a paz, a ordem, o céu, o inferno, etc., fantasias estúpidas, vendem-se a preços fabulosos”.
Como suas heroínas, João de Minas sentia-se um deslocado da história: o mundo no qual militara ardentemente se mostrava uma grande farsa. Sua literatura transgressora se alimentou desse ressentimento e dessa nostalgia, e parece ser o que de melhor escreveu.
Aos leitores de hoje, o estilo pode lembrar o de outro autor, também repórter por formação, que se consagraria como um dos maiores nomes da literatura nacional: Nelson Rodrigues (1912-1980). Seja pelos títulos chamativos, seja pelas frases lapidares – “O Universo está errado. A mulher é que está certa” –, seja pelo ritmo, pelas personagens e situações [veja trecho no box]. Ambos foram herdeiros de uma tradição de crônicas urbanas e de costumes, formada principalmente por João do Rio e Benjamin Costallat (1897-1961). Mas quando Nelson começou sua carreira de repórter policial no jornal do pai, João de Minas já era famoso pelas polêmicas crônicas que deliciavam os leitores.
Foram dez livros e três reedições entre 1929 e 1937. Para coroar os traços quase ficcionais da vida de Ariosto Palombo, ou João de Minas, seu afastamento das letras deu-se quando adotou de vez outro pseudônimo: Mahatma Patiala – o primeiro nome certamente pegando carona na fama do indiano Gandhi. Em 1935, Patiala fundou a Igreja Brasileira Cristã Científica, da qual se autoproclamou o primeiro papa. Sua obra derradeira foi a Bíblia Cristã Científica do Brazil, A Vida Começa na Ciência Divina. Sendo dele, não podia ser um livro qualquer. O ex-escritor João de Minas, agora profeta messiânico, misturava elementos de diversos segmentos religiosos e laicos brasileiros – catolicismo, umbanda, espiritismo, esoterismo, comunismo e nacionalismo – buscando atingir dos mais pobres aos mais ricos, além de intelectuais espiritualizados.
A “Cura Divina Total” conquistou adeptos por mais de três décadas, mas ao trilhar o caminho místico, ele lançou uma pá de cal sobre a carreira literária, adicionando outro estigma ao seu perfil: além de conservador político e mitômano, escritor pornográfico e folhetinesco, passou a ser visto como louco ou golpista. Foi barrado em associações de escritores, teve o nome apagado das enciclopédias literárias e foi proibido o estudo de suas obras nas academias. Em 1984, quando morreu na cidade de Boituva, interior paulista, o Brasil já se esquecera completamente daquele outrora grande escritor.
João de Minas permaneceu apenas na memória dos que viram méritos em seus livros, cada vez mais difíceis de serem encontrados até em sebos. Sofre do mesmo mal que antes atingiu seu inspirador João do Rio, esquecido porque “negam seu talento pela sua arte, e a sua arte pela sua vida”.
Leandro Antonio de Almeida é historiador e autor da dissertação “Dos sertões desconhecidos às cidades corrompidas: um estudo sobre a obra de João de Minas (1929-1936) (USP, 2008).
Saiba Mais - Bibliografia:
BULHÕES, Marcelo. Jornalismo e literatura em Convergência. São Paulo: Ática, 2007.
CAMPOS, Humberto de. “Um Bárbaro”. In: Crítica (Primeira Série). 2ª ed. Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre: W.M. Jackson Inc. Editores, 1945, pp. 365-382.
FREIRE-FILHO, Aderbal. “Quem é Esse Cara?” In: Minas, João de. A Mulher Carioca aos 22 anos. Rio de Janeiro: Dantes, 1999, pp. 211-263.
SALIBA, Elias Thomé. Raízes do Riso: a representação humorística na história brasileira – da Belle Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
Saiba Mais - Site:
“Dos sertões desconhecidos às cidades corrompidas: um estudo sobre a obra de João de Minas (1929-1936)” (USP, 2008). De Leandro Antonio de Almeida. Disponível em www.rhbn.com.br/joaominas“Leituras de Jantando um Defunto”. Revista de História, DH-USP, nº 155, 2º semestre de 2006, pp. 261-282. Disponível em www.rhbn.com.br/jdefunto
As lições de Claudia
Claudia era órfã de pais, e tinha um vasto prédio colonial na Rua da Alfândega.
Era uma escritora, gênero moderno.
Publicava artigos remunerados, nos Diários Associados, semanalmente no O Cruzeiro, ensinando o seu sexo a ser feliz.
Ultimamente o seu nome inchara, em plena evidência, depois da viagem ao Norte.
O Dr. Aldo Fonseca, governador do Rio Grande do Norte, e não menos feminista, lhe oferecera um banquete.
Claudia voltou ao Rio dando entrevistas, e discutia a entrada das saias para a Academia Brasileira de Letras.
Ela era candidata.
Por cima de tudo isso, não era feia. Tinha fé – não nos destinos humanos, ou no espírito, ou na alma, ou nos ideais e princípios – mas fé na carne, fé na matéria, fé na lama darwiniana.
Sim, Claudia era muito prática.
As suas narinas às vezes tremiam, chupando no ar cheiros fecundos, caprinos, esses odores da libido que esvoaçam nos ambientes aquecidos.
Que delícia!
Ela então fazia como os bodes, de ventas universalmente arreganhadas, os olhos bêbedos de volúpia.
De vez em quando, a ilustre escritora matriculava-se na Escola Normal.
Não fazia exames nem nunca pretendera diplomar-se.
Para quê?...
Ela se matriculava só para remoçar, para ser aluna, para ser estudante.
Que vidão!
Podia assim estar na intimidade dessas meninas fresquinhas, doiradas uvas e maçãs humanas, e que lá um dia, de repente, se viam mulher, com o sexo e o bico dos seios coçando.
Claudia oficialmente era a vampira dessas jovens sarapintadas de divindade, como que redondinhas Nossas Senhoras, rijamente imaculadas, com o ventre de veludo digno de receber a concepção brocha do Espírito Santo.
A famosa literata gostava de emporcalhar essas santas estúpidas, ainda com a ingenuidade do irracional, ensinando-lhes as mais refinadas patifarias.
Essas lições eram em lugares finos, quartos de casas de rendez-vous, com bebidas e cigarros, cocaína, frutas.Para esse fim, Claudia tinha até aparelhos de borracha, órgãos sexuais fabricados na Argentina.
Ela – a César o que é de César! – sabia vencer, impunha-se, como uma aranha de ópio.
A mulher carioca aos 22 anos, Ed. Dantes, 1999. pp. 15-16.
O profeta pornopolítico
Leandro Antonio de Almeida