O pudim lírico

José Almino de Alencar

  • Durante a década de 1920, período anterior à telefonia interurbana, quando a vida literária, antes concentrada quase exclusivamente na Corte, começava a crescer em outros centros urbanos, os modernos passaram a construir uma vasta teia de correspondência. Através dela circularam manuscritos e suas respectivas correções, opiniões estéticas, sugestões bibliográficas, colaborações para revistas, conspirações para a publicidade de livros e personagens, intrigas, suspiros e queixas. Nesse mar de cartas destaca-se a correspondência entre Manuel Bandeira e Ribeiro Couto, que está na Fundação Casa de Rui Barbosa e foi reunida por mim, em volume ainda inédito.

    A correspondência endereçada a Couto está mais preservada: são 170 cartas de Bandeira e somente 18 cartas de Couto, entre 1919 e abril de 1929. Durante esse período, inicia-se e consolida-se a carreira literária de Ribeiro Couto. Foram também escritos ou publicados os dois volumes mais expressivos da poesia de Manuel Bandeira: Poesias (A cinza das horas, Carnaval e Ritmo dissoluto), em 1924, e Libertinagem, com poemas de 1924 a 1930, lançado em 1930. Mais tarde, por ocasião das homenagens aos cinqüenta anos do amigo [1936], Couto escreveria:

    “Fui o primeiro leitor de quase todos os poemas escritos depois do Carnaval [1919]. Antes quando residíamos na mesma cidade, depois à distância (que a correspondência constante e as alegres visitas anulavam), durante dez anos, pelo menos, não se passou semana sem que trocássemos essas impressões risonhas ou tristes, sempre leais e completas que o coração se purifica.”

    De sua parte, Manuel Bandeira salienta o papel do amigo no seu Itinerário de Pasárgada: “À influência do homem Ribeiro Couto, muito saudável, e do poeta Ribeiro Couto com os seus amados simbolistas de segunda ordem – Samain, Jammes, etc. – veio juntar-se a de Mário de Andrade...”

  • Uma carta quase sempre possui múltiplas significações. Nelas podemos encontrar elementos que caracterizariam a historicidade dos textos, assim como eventuais traços, vestígios do processo criativo e do contexto psicossocial em que este se processa. Fazem parte, portanto, daquele acervo de documentos à margem da obra acabada, elementos que subsidiam as análises nas quais se privilegia o ato de criação e o fazer literário. São parte de uma arqueologia que procura reconstituir o ato de criação e busca colocá-lo “em presença”, vivo em suas hesitações, sua dispersão e precariedade. Desta forma, esses documentos nos ajudam a identificar as motivações, a situação intelectual dos correspondentes, como criadores ou como personagens da literatura e do seu tempo.

    “Mando-lhe os versos que fiz a pedido do Gilberto Freyre, pernambucano inteligentíssimo do Recife, para o álbum comemorativo do centenário do Diário de Pernambuco (o jornal mais antigo da América do Sul. Mas há um jornal do Chile que disputa o título...) Saudades a você e lembranças a Menina”, escreveu Manuel Bandeira a seu amigo, o poeta Ribeiro Couto, no fim de uma carta de 1925. Tratava-se do poema “Evocação do Recife”.

    Em 1925, encarregado pela direção do Diário, Gilberto Freyre organiza o Livro do Nordeste, lançado em 7 de novembro do mesmo ano e no qual foi publicado pela primeira vez aquele poema: “o poema em certo sentido mais brasileiro de Manuel Bandeira — ‘Evocação do Recife” — ele o escreveu porque eu pedi que ele o escrevesse. O poeta estranhou a princípio o pedido do provinciano. Estranhou que alguém lhe encomendasse um poema para uma edição especial de jornal como quem encomenda um pudim [...] Mas um belo dia recebi ‘Evocação do Recife’”...
    Pode-se afirmar, invocando o testemunho de Bandeira poeta no seu Itinerário de Pasárgada, que o seu encontro com Gilberto Freyre – “cuja sensibilidade tão pernambucana muito concorreu para me reconduzir ao amor da província e a quem devo ter podido escrever naquele mesmo ano a minha ‘Evocação do Recife’” – e a encomenda feita por este tenham, por assim dizer, evocado a “Evocação”. E mais: o estímulo à memória do poeta teria permitido que a matéria de sua vida recifense se mesclasse com o que observava no seu cotidiano humilde de Santa Teresa, onde vivia, tornando-se um dos elementos ativos de seu imaginário poético.

  • Esta atitude contagia também a correspondência com Ribeiro Couto: nada mais fácil e natural do que compartilhar esses objetos extraídos por uma revelação da sensibilidade com esse leitor privilegiado, testemunha e cúmplice daqueles ambientes. Colegas na pensão de D. Sara e companheiros de noitadas na Lapa, os dois escritores evocam a casa e o quarto, a rua e o bar – espaços permeáveis da experiência modernista. Neste sentido, são expressivos os dois trechos abaixo, que retratam do Bar Nacional e a pensão de D. Sara, respectivamente.

    O primeiro:


    “Entrei no Bar Nacional, onde fiquei bebendo com Dodô e uma turma de que fazia parte a Leda Rios. À meia-noite, na hora dos brindes, há um pega de bofetões entre Dodô e um moreninho valente chamado Ubirajara, camarada de Dodô: Madeira dois FF derramado, o tempo fechou, todo o mundo querendo brigar, uns bêbados em êxtase entrando no meio dos pescoções com a taça na mão propondo a saúde do ano novo, guarda-civil em penca separando gente, o gerente do bar ativíssimo resolvendo amigavelmente as coisas, e eu atento a tudo, calmo, encantado com a mocidade daqueles sujeitos que sentiam uma necessidade absoluta de brigar e de apanhar pra fazer alguma coisa mais que beber apenas.”
    (Carta de Manuel Bandeira a Ribeiro Couto: Rio de Janeiro, 2 de janeiro de 1928
    .)

    O segundo:

    “Escrevo-lhe da cama, com febre, uma gripe safada. O tempo aqui esteve safadíssimo. Felizmente o sol rompeu hoje.
    Uma de D. Sara: Quando era noiva do Manuel, um alemão, hóspede da tia, quis casar-se com ela e falou-lhe nesse sentido. D. Sara desenganou-o. O alemão pergunta-lhe: – Mas a senhorita não gosta de mim?
    E D. Sara: – Gosto, sim; mas é d’sint’r’ssadamente".
    (Carta de Manuel Bandeira a Ribeiro Couto: Rio de Janeiro, 2 de [junho ou julho] de 1923.)


    Às vezes, o tema abordado na correspondência se traduzia imediatamente em poema:


    “Tenho passado um mês divertido com o Gilberto [Freyre]: é um companheiro excelente porque é meio fraquinho como eu, discretíssimo, e dá uma perna ao diabo pra debochar os outros. Nós levamos uma vida surrealística de mistificações.


  • Esta manhã ele me contou um episódio onde eu descobri incontinenti o self-made poem. Lá vai:


      Apresentação
      Na sala da redação do grande matutino
      O redator-secretário fez a apresentação:
      “Fulano, uma glória nacional,”
      “Sicrano, esperança do norte.”

      A esperança do norte não disse nada.
      A glória nacional também.”
    (Carta de Manuel Bandeira a Ribeiro Couto: Rio de Janeiro, 10 de janeiro de 1928.)

    Tudo em volta – ou melhor, o modernismo – incentivava o registro do imediato, uma narrativa às vezes propositalmente ingênua e enfaticamente parodística que os dois amigos se enviavam, como pequenos petardos literários. Tal como nesta carta de Bandeira, de 17 de dezembro 1926:

    “COUTO, CUIDADO COM OS MITÔMANOS! Nós estamos cercados de mitômanos!! Pelo menos assim o diz Galeão Coutinho [jornalista mineiro]. Há mitômanos no jornalismo, na política, na literatura. ELES PENETRAM ATÉ EM NOSSAS CASAS!!! É horrível. Antero [de Quental] é mitômano. Paim é mitômano. Zeca Patrocínio [jornalista carioca] é mitômano.

    Mot de la fin: A novela do Galeão não se chama mais A dançarina dos mil semblantes. Vai sair com o título........ Envenenadas de amor!”
    M.

  • É o que observamos também na primeira carta enviada da Europa por Ribeiro Couto, em 26 de dezembro de 1928:

    Ribeiro Couto tem sempre na alma o Brasil, o Rio ou Pouso Alto, mas o Brasil, esse mundo indestrutível de afeições e de hábitos, de atividades e de esperanças, em que a nossa existência se resume aí.

    Não pense que tenho os olhos bestamente fechados à beleza do corpo de que estou fruindo... Isto é um grande país, de uma grande beleza, e uma grande civilização!

    Mas o Alpedrinha mora no fundo de mim. Em Alexandria, encontrando o Rapozão por um maravilhoso acaso, Alpedrinha quer só saber notícias da política. Ele tinha os ossos no Egito, mas a saudade em Portugal [episódio do romance A relíquia, de Eça de Queiroz] .

    Manuelzinho, não pretendo sair da Europa antes de falar correntemente quatro idiomas e de ter visto os principais países civilizados.”

    Manuel Bandeira só voltaria ao Recife em 1927, após uma ausência de trinta anos, e quando completaria quarenta e um anos de idade. Entre a “Evocação” e o seu retorno, são várias as menções, nas cartas a Ribeiro Couto, a projetos de viagem que teriam sido adiados. Mas a cidade-infância reinstalara-se no poeta, combinou-se ao desejo de vida, de camaradagens e de criação poética tão pujantes e tão pungentes naquela década. Recife reaparece com toda a força no seu “Profundamente”:

    Não falo da Rua da União, mas ela está ali tão presente quanto na “Evocação do Recife”:
    Meu avô
    Minha avó
    Totônio Rodrigues
    Tomásia
    Rosa

    Mas a referência ao passado não vira simples notação sentimental ou registro autocomplacente. Ela é um recurso penosamente consciente de fabricação lírica, em que o traço confessional se anula, se minimiza ou é ocultado pelo efeito poético maior desejado. É o que Bandeira comunica a seu amigo Couto em uma carta de 5 de julho de 1927:

    “Eu sabia que você havia de gostar muito do ‘Profundamente’, mas como há sempre aquele imprevisto a que você se referiu, fui modesto. [...]. Fiquei satisfeitíssimo por ver que você o entendeu exatamente como eu quis e trabalhei para que o sentido fosse entendido: a impressão tranqüila e grandiosa da mor¬te; o ciclo da vida. Foi precisamente a sensação formidável que eu recebi naquela noite quando de repente acordei no silêncio. Ah, Ribeirinho, Ribeirinho, se de quinze em quinze dias eu fizesse uma coisa assim! Porque, quando eu faço, passo uns dias vivendo de pei¬to dilatado pela ozona daquela descarga elétrica. Como sempre, tudo se organizou fulminantemente. Tive de corrigir alterar [sic], procurar até achar ‘as vozes daquele tempo’; precisavam ser vozes de afeto mas que não sugerissem nem de leve os meus lutos pessoais. (O luto dos avós tem um sorriso de aposentadoria com todos os vencimentos) Depois os avós datam. Escolhi a dedo Totônio Rodrigues, Tomásia. (Você terá sentido que era a velha cozinheira ex escrava?) e Rosa, a mulata magra ama seca [sic, sem hífen].”

    Como se vê, os “versos a pedido”, “encomendados como um pudim,” vieram a ter vastas e profundas ressonâncias, que são registradas nessa correspondência.

    José Almino de Alencar é pesquisador e atualmente Presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa e autor do livro de poesias Maneira de Dizer.