Em um dos episódios do filme “Sonhos” (1990), de Akira Kurosawa, um artista amador passeia por uma sala de museu, carregando seu cavalete, enquanto escolhe um quadro de Van Gogh para reproduzir. Copiar um quadro famoso não faz de ninguém um artista, mas essa prática permanece ainda hoje, principalmente em museus da Europa, onde amantes da arte copiam obras famosas, talvez para aprender os segredos dos mestres. Ou para vivenciar a experiência da criação artística. No filme de Kurosawa, de tanto olhar para os quadros, o amador entra em sonho dentro de um deles, e persegue Van Gogh pelas paisagens de cores intensas do sul da França. “O sol me compele a pintar” é o ensinamento que Van Gogh transmite ao sonhador.
O artista carioca Hélio Oiticica (1937-1980), em vários textos brincou com o significado solar de seu primeiro nome e, como o sol de Van Gogh, desenvolveu uma obra que compele a um comportamento artístico. Hélio não é o sol que compele a pintar, mas o sol que compele a uma existência artística total. Se em Kurosawa o artista amador tem a experiência onírica de habitar um quadro bidimensional, nas obras de Hélio Oiticica é o quadro que se encorpa tridimensionalmente e se transforma em ambiente para o comportamento estético.
“Magic Square no. 5”, obra de Oiticica instalada no Museu do Açude, no Rio de Janeiro, sintetiza a pesquisa com a cor e com o comportamento que o artista empreendeu desde o início dos anos 1960. Entrar na “Magic Square no. 5” é como ir a uma praça de uma época futura. Envolta pela Floresta da Tijuca, que circunda o Museu do Açude, a obra tem ares de ruína. O acrílico azul transparente que cobre parte da construção, no entanto, aponta para uma tecnologia de um tempo futuro, embaralhando a noção de tempo cronológico. Esse labirinto perdido na floresta é também cenário de um jogo, espaço para o viver criativo, pois nessa obra é possível andar dentro da cor. Ou sentar, dançar, correr, respirar. Enfim, ser dentro da cor, intransitivamente. Como disse o artista, “o próprio dia-a-dia, para mim, é a construção de uma obra, o dia completo é a obra. Como também não existe mais o movimento de vanguarda: cada dia, o dia-a-dia, é a vanguarda, entende?”
Hélio Oiticica pretendia erguer uma das sete praças mágicas no Parque Ecológico do Tietê, área verde que também abrigaria projetos de outros artistas em seus 120 quilômetros de extensão, atravessando dez municípios da Grande São Paulo. Com lagos artificiais e paisagismo de Roberto Burle Marx, o parque teria obras “que pudessem oferecer algo mais que a simples contemplação passiva do espectador. Pensamos em obras que possibilitem eventual participação ativa do visitante”, escreveram os organizadores do projeto cultural para o parque, Aracy Amaral e Ruy Ohtake, em carta para Oiticica de 1978. O projeto cultural para o entorno do Rio Tietê não aconteceu, e as “Magic Squares” permaneceram em forma de maquete por duas décadas.
A praça hoje instalada no Museu do Açude foi feita em 2000, vinte anos depois da morte de Hélio Oiticica. Em outubro passado, uma segunda versão de “Magic Square no.5” foi inaugurada no Centro de Arte Contemporânea de Inhotim, a 60 quilômetros de Belo Horizonte. “Magic Square no.3” pertence a uma coleção particular e está construída no meio de colinas verdes de uma fazenda no Rio de Janeiro. Essas três instâncias dos projetos de 1978 foram executadas com supervisão do Projeto HO – instituição que preserva a obra de Hélio Oiticica – a partir de maquetes, esboços e textos deixados por Oiticica descrevendo sete praças mágicas.
Alguns dos esboços das “Magic Squares” detalham até a direção das pinceladas de cor que deveriam cobrir cada parede do labirinto, relacionando-os à série “Invenções”, uma das primeiras experiências de Oiticica com a cor. As “Invenções” são pequenos quadrados monocromáticos, pintados em sucessivas camadas de cor no início dos anos 1960, quando Hélio Oiticica investigava a “cor-tempo”, um conceito de cor que abole a noção comum de espectro de cores. No lugar do salto de um amarelo para um laranja no espectro cromático, Oiticica se concentra nas características de onda contínua da cor. Assim como a vida não é feita de eventos pontuais, mas sim de um tempo que escorre continuamente, a cor também teria uma duração intrínseca. Perceber a cor que acontece no tempo – não em saltos descontínuos de uma freqüência de luz para a outra – pode levar o espectador a vivenciar sua própria “duração”. Naquela época, Oiticica vinha lendo textos do filósofo francês Henri-Louis Bergson (1859-1941), para quem a duração é uma das dimensões dos corpos, e usou-os como alicerces para o conceito da cor-tempo. Na “Magic Square no. 5”, cada parede parece ser uma versão gigantesca dos pequenos quadrados da série “Invenções”.
Logo depois de pintar as “Invenções”, ainda no início dos anos 1960, Oiticica pendurou suas pinturas por fios que vinham do teto, fazendo-as flutuar no espaço, libertando-as do plano rente à parede. O quadro então passava a ter frente e verso e o espectador podia circundá-lo, como se faz com um móbile. Com os “Núcleos” de 1960-63, espaços definidos por planos ortogonais dependurados do teto por fios, Oiticica inaugura a construção de um espaço de cor que pudesse ser penetrado pelo espectador. Daí o termo “penetráveis”, que o artista usaria até o fim de sua carreira. Esses ambientes exigem mais do que um espectador: a obra só faz sentido quando experimentada, habitada.
O corpo do participador é, nesse início dos anos 1960, tratado por Oiticica como um aparato sensorial. O artista fornece a cor que incitará os sentidos do participador. Mas essa noção do corpo-máquina que recebe estímulos das obras passa por uma transformação importante a partir do contato de Hélio Oiticica com a dança e com o Morro da Mangueira, no Rio de Janeiro. Ele começa a freqüentar a favela, onde recebe aulas de dança, e torna-se passista da escola de samba Estação Primeira de Mangueira. O corpo que sobe o morro, caminha pelas quebradas e pisa um chão de pedras é mais do que um receptor de estímulos sensoriais. Depois da Mangueira, o corpo está recheado com o morro. Vira parte do ambiente. A mais famosa série de obras de Hélio Oiticica, os “Parangolés”, feitos a partir de 1964, exige o corpo que dança, o movimento, a brincadeira.
A maleabilidade dos parangolés e os materiais que remetem ao Morro da Mangueira – como pedriscos, juta, palha, terra – construirão entre 1967 e 1969 conjuntos de penetráveis que inauguram na obra de Oiticica o conceito de lazer criativo, ou “crelazer”. A obra “Tropicália”, montada no MAM do Rio de Janeiro em 1967, oferece ao participador um caminho de pedras cercado de plantas, araras, poemas escritos em papelão e cabines penetráveis cujas paredes misturam madeira e chita. Esse labirinto sensório é montado novamente em 1969, em exposição do artista na Whitechapel Gallery, em Londres, ao lado de um novo conjunto de penetráveis – o “Éden” – que novamente utiliza o vocabulário material dos parangolés para construir cabines, tendas, ninhos, lugares para se ficar “à espera do sol interior”, segundo o artista. “Éden” é o abrigo do viver descondicionado, tão liberto de comportamentos preestabelecidos quanto a cor havia sido liberta do quadro. Como fizera com a “duração” da cor nos “Núcleos”, Oiticica agora insistia na duração dos corpos dos participadores. As duas operações conferiam uma quarta dimensão – o tempo – ao que usualmente se percebe em três dimensões.
A série “Magic Squares” é uma junção das experiências de Oiticica com a duração da cor e com a duração dos participadores, como um novo éden concebido para o espaço público. “Aí eu comecei a fazer um negócio assim de umas maquetes que fossem e pudessem ser uma praça... inclusive eu chamo de ‘magic square’, porque square é quadrado e é praça ao mesmo tempo. Que pudesse ser uma coisa que tá permanentemente ali, para uso do público”, explicou ao jornal Folha de S. Paulo. Naqueles espaços, o participador seria o artista de si mesmo. Hélio o compele a existir de forma inventiva, usar a praça mágica para o que chamou de “autoteatro”.
No final dos anos 1970, Oiticica insistia em dizer que tudo o que fizera até então fora um prelúdio ao que estava por vir, um “prelúdio ao novo”. Se esticar as definições de arte para abranger o cotidiano fora apenas o prelúdio, o que esperar desse novo, que Oiticica anuncia nos últimos anos de sua vida? Como o dia-a-dia viraria a obra de arte? Qualquer um pode ser o artista de seu próprio dia? Onde ficariam instalados os labirintos que, incitando o autoteatro, conduziriam a uma existência artística? Talvez a série “Magic Squares” forneça uma resposta para o que seria o novo de Hélio Oiticica. A recente construção de algumas delas pode ser o começo dessa investigação.
Paula Priscila Braga é autora da tese “A Trama da Terra que Treme: multiplicidade em Hélio Oiticica” (USP, 2008) e organizadora do livro Fios Soltos: a arte de Hélio Oiticica. (Perspectiva, 2008).
Saiba Mais - Bibliografia:
BRETT, Guy. Brasil Experimental; arte/vida: proposições e paradoxos. Maciel, Kátia (org.). Rio de Janeiro: Contracapa, 2005.
CARNEIRO, Beatriz Scigliano. Relâmpagos com Claror: Lygia Clark e Hélio Oiticica, vida como arte. São Paulo: Imaginário, 2004.
FAVARETTO, Celso. A Invenção de Hélio Oiticica (1992), 2ª ed.. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000.
Quantas tropicálias?
A obra “Tropicália”, criada por Hélio Oiticica em 1967, ficou associada a uma mudança de rumo na música popular brasileira. Caetano Veloso inspirou-se nela para batizar uma canção no ano seguinte, e a canção batizou um disco que se tornaria antológico: “Tropicália” juntou Caetano, Gil, Os Mutantes, Tom Zé e outros jovens músicos numa inédita salada de referências a temas nacionais reinterpretados com guitarra elétrica e vários experimentos formais. A partir daí, veículos da mídia passaram a chamar o movimento de “Tropicalismo”. Ainda que a origem do termo remetesse a uma obra sua, Hélio Oiticica repudiava a qualidade de movimento artístico e a “voracidade burguesa” com que se passou a consumir a palavra “tropicália”. Para o artista carioca, tanto sua obra quanto o programa dos músicos, atores, cineastas e poetas associados ao Tropicalismo tinham objetivos éticos profundos, que estavam sendo ignorados pelos veículos de comunicação. Oiticica era amigo dos músicos baianos. Nos anos 1970, fez cenografias de shows de Gilberto Gil e Gal Costa, para quem também criou a capa do disco “Legal” (1970).
O quadro virou praça
Paula Braga