O Renascimento pode estar mais perto do que se imagina. Quatorze pinturas em guache sobre pergaminho que representam as conquistas políticas do imperador do Sacro Império Romano-Germânico, Maximiliano I (1459-1519), encontram-se na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. A obra data das últimas décadas do século XVI, e até bem pouco tempo a dimensão do seu valor artístico era desconhecida.
Inicialmente, o conjunto foi descrito no catálogo da BN apenas como “um álbum aquarelado contendo retrato de condes e senhores que constituíam o séqüito de Maximiliano I”. Hoje, sabe-se que as imagens são muito mais do que isso. O achado é reprodução em pintura de parte da maior obra xilográfica realizada no Ocidente: o Triumphzug (“Triunfo do Imperador Maximiliano”, em português).
O trabalho original era de grandes dimensões, e não podia ser diferente. Afinal, a ideia era exaltar o triunfo político, os feitos pessoais, as guerras, a pompa da corte, a genealogia e a extensão dos domínios do monarca. No total, três conjuntos independentes formavam o Triumphzug: “Cortejo Triunfal”, com 55 metros de comprimento e 31 centímetros, o “Arco Triunfal” – com 3,6 metros de altura e 2,8 metros de largura – e “Carruagem Triunfal” – com 46 centímetros por 3,43 metros. Mas não bastava ser grande; era preciso que a composição estivesse por todo o Império (que compreendia os atuais territórios de Alemanha, Áustria, Suíça, Liechtenstein, Luxemburgo, República Tcheca, Eslovênia, Bélgica e Holanda, além de partes da Polônia, da França e da Itália), ou seu propósito não seria cumprido. Deveria, para isso, ser montado e colado em paredes de todas as Rathaus, ou Câmaras Municipais, de seus domínios. A escolha da gravura foi proposital, devido à possibilidade de reprodução ilimitada. Em se tratando do século XVI, não é de se estranhar a escolha pela xilo, já que o período foi a era de ouro deste tipo de arte. A técnica usa como matriz a madeira, que é entalhada com a figura que se pretende imprimir.
As aquarelas que estão atualmente na Biblioteca Nacional foram inspiradas no maior e mais importante dos conjuntos do Triumphzug, o “Cortejo Triunfal”, e remonta ao apogeu da arte xilográfica na Alemanha. Mas tem uma diferença fundamental em relação a esta: justamente, a de não ser gravura. Feita por encomenda de um infante, ou de um arquiduque, era natural que este preferisse uma pintura exclusiva e esplêndida, em vez de uma gravada – que não tem o mesmo caráter único. Além disso, sua dimensão é bem menor: os pergaminhos medem 37 centímetros de altura por 16 de largura.
A pergunta que fica é: como esta versão de uma obra alemã veio parar no Brasil? Essas pinturas foram doadas, em 1773, pelo inglês William Dugwood, ourives de D. João V, à antiga Livraria Real de Lisboa, e acabaram chegando à principal colônia portuguesa como parte da biblioteca trazida por D. João e que deu origem ao acervo da BN. Supõe-se que, devido aos parentescos dos monarcas portugueses com a Casa da Áustria (ou Habsburgo, dinastia à qual pertencia Maximiliano I), uma vez que as quatro rainhas de Portugal entre 1518 e 1611 tinham esta origem, a aquisição tenha buscado compensar algum outro “Cortejo” destruído em 1755 no terremoto de Lisboa.
As quatorze pinturas sobre pergaminho têm autoria e data desconhecidas. Já as informações sobre o “Cortejo triunfal” são detalhadas: a obra é do pintor alemão Hans Burgkmair (1473-1531) e começou a ser preparada em 1507, sendo concluída somente quase duas décadas depois, em 1526. O projeto xilográfico era complexo nas suas representações históricas e alegorias, e fora dirigido primeiro pelo pintor da corte de Maximiliano I, Jörg Kölderer (1470-1540), sucedido em 1512 pelo humanista Johannes Stabius (1460-1522).
Paralelamente a isso, outro artista, Albert Altdorfer (1480-1538), desenvolvia em sua oficina o projeto para 109 pranchas de iluminuras sobre pergaminho, semelhantes às que estão na Biblioteca Nacional. Um trabalho só terminado em 1517, quando toda a série estava finalmente pronta para se transformar em xilogravuras.
Burgkmair foi o artista que mais trabalhou no “Cortejo”. São dele 67 pranchas, completadas na sua oficina de Augsburgo, cidade no sul da Alemanha. As outras matrizes ficaram sob a responsabilidade de outros artistas: sete com Johann Beck, duas com Hans Schäufelein, e mais 39 com Albrecht Altdorfer. Por último, mas de maior importância, estava a oficina do pintor e gravador Albrecht Dürer (1471-1528), um dos grandes nomes da arte renascentista alemã, que ficara encarregada de 24. Coube também ao seu ateliê a autoria exclusiva dos dois outros segmentos do Triumphzug, os já mencionados “Arco” e “Carruagem” triunfais.
Na fase preparatória de 1512, estavam previstas 148 matrizes xilográficas contínuas, que seriam montadas lado a lado. A morte de Maximiliano em 1519, quando as pranchas de madeira ainda não estavam completamente talhadas, interrompeu a realização da obra. A primeira impressão do Triunfo só ocorreria em 1526, com 137 xilogravuras, a mando de Fernando I, neto de Maximiliano, irmão e sucessor de Carlos V como imperador do Sacro Império.
Até agora, restavam no mundo três grupos de pinturas sobre pergaminho baseadas no “Cortejo Triunfal”, dois na Áustria e um na Espanha, aos quais se junta agora o identificado no Rio de Janeiro. Os mais antigos estão em Viena: 110 pinturas a guache sobre pergaminho de cerca de 1512, atribuídas a Kölderer, estão na Biblioteca Nacional da Áustria, e uma outra série, datada de 1517, com 62 pinturas atribuídas a Altdorfer, está conservada na Galeria Albertina, também na Áustria. Na Biblioteca Nacional de Madri, há um outro conjunto, com 85 pinturas de guache com ouro sobre pergaminho, datado de 1606.
Apesar da grande similaridade entre as quatorze pinturas que estão no Rio, nenhuma é uma réplica exata das xilogravuras de Burgkmair. Não que o artista anônimo tivesse se permitido maiores liberdades, criando novas figuras, mas o número de nobres, que era de cinco em cada prancha, é reduzido a um par. Estas eram destinadas a mostrar todos os tipos da nobre arte das justas (torneios em que dois cavaleiros armados com lanças, cavalgando em direções opostas, tentam derrubar um ao outro), e no conjunto, apenas dois personagens, ambos com os rostos expostos, são identificados: Anthony von Yfan, prancha 41, e Wolfgang von Polhaim, prancha 44. Por outro lado, na numeração original das folhas do códice da Biblioteca Nacional, a última tem inscrito o número 17, que coincide com o número de pranchas de Burgkmair dedicadas aos torneios, xilogravuras 40 a 56. Uma comparação com o número de xilos sugere que faltam três pinturas para completar o número original.
Mas o que torna esta descoberta ainda mais importante para o Brasil é o fato de o artista das xilogravuras originais, o pintor e gravador alemão Hans Burgkmair, ter sido também o autor das primeiras imagens de brasileiros: são eles os tupinambás que aparecem sob o título genérico de “Gente de Calicute”, com feições alemãs, mas com seus macacos e papagaios, misturados a vacas e cabras extemporâneas, lado a lado com mouros e africanos também deslocados nas pranchas 130 e 131 do “Cortejo Triunfal”.
Dürer já havia inserido um jovem e alourado guerreiro tupinambá brasileiro no Livro de Horas (tipo de manuscrito com iluminuras, comum na Idade Média) de seu protetor Maximiliano I. A ilustração, que data de aproximadamente 1515, tinha finas feições caucasianas que não podiam ser mais germânicas, com a cabeça coberta de plumas, um saiote e um colar de penas, além de uma borduna (arma indígena de madeira, similar a um porrete) e um extraordinário par de sandálias.
As imprecisões na caracterização destes “brasileiros” só vêm confirmar o que a falta de evidências indica: provavelmente, Burgkmair ou Dürer nunca viram habitantes do Novo Mundo. É possível também que eles tenham conhecido a xilogravura alemã dos canibais brasileiros – uma vez que esses usaram nela os mesmos adornos de penas com que aparece o índio no livro Mundus Novus, de Américo Vespúcio, impresso em Augsburgo no ano de 1505.
Os ameríndios de Burgkmair apontam para uma maior fidelidade nas imagens de brasileiros, como as produzidas na segunda metade do Quinhentos por Theodor de Bry. Eles fazem, também, com as pinturas da Biblioteca Nacional, uma justa aproximação daquela que foi a maior alegoria já realizada de um desfile barroco com o único “desfile triunfal” reinventado no século XX: os cortejos maiores das escolas de samba no carnaval carioca.
Julio Bandeira é autor de O Brasil na rota da navegação francesa (Editora Reler, 2009) e de Debret e o Brasil: Obra Completa (1816-1831) (Capivara, 2009).
Saiba Mais - Bibliografia
APPELBAUM, Stanley. 37 Woodcuts by Hans Burkmair and Others. Nova York: Dover, 1964.
CAVAZZA, Silvano (curador). Divus Maximilianus, una contea per i Goriziani, 1500-1619 (catálogo de exposição). Gorizia: Edizioni della Laguna, 2002.
Biblioteca Nacional (catálogo). São Paulo: Banco Safra, 2004.
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