Para além da infinidade de livros, o acervo da Biblioteca Nacional reserva surpresas em muitos outros suportes. É o caso de um belo par de baralhos de cartas de jogar, intitulado Souvenir do Centenário da Independência do Brasil (1922), sob a guarda da Divisão de Iconografia. Ilustrados quase exclusivamente com fotografias do Rio de Janeiro, os baralhos da Independência estão inseridos na categoria de documentos efêmeros – que inclui, entre outros, aqueles referentes à memória de eventos nacionais que contribuíram para a construção da cultura e da identidade do povo.
O verso de todas as cartas é o mesmo: a fotografia da estátua equestre de D. Pedro I acenando com o Manifesto às Nações, em uma representação alegórica da Independência. Resultado de um concurso público em 1855, esse monumento, projetado por João Maximiano Mafra, foi produzido na França por Louis Rochet e instalado em 1862 na Praça Tiradentes, onde até hoje permanece. Na face dos naipes e valores, a maior parte das imagens impressas traz cenários da cidade, numa seleção que transita entre suas paisagens naturais e urbanas mais famosas, além de algumas curiosidades. Em todas as cartas há uma breve identificação do local ou do acontecimento a que se referem – mas infelizmente não informam datas.Se na época o baralho convidava os jogadores a um passeio por diversos bairros cariocas, hoje ele nos proporciona uma viagem ao Rio Antigo. No naipe de espadas vemos a avenida Beira-Mar e o Outeiro da Glória com o Pão de Açúcar ao fundo. No Posto 6, em Copacabana, aparece o obelisco em comemoração à reforma e ao alargamento da avenida Atlântica feita na década de 1910, monumento que depois seria transferido para o outro extremo do bairro, no Leme. Copacabana estampa várias outras cartas, a partir de diferentes ângulos de visão. O bairro era ocupado quase exclusivamente por casas e ainda existiam muitos trechos vazios. Nem o Hotel Copacabana Palace tinha sido inaugurado – isto só ocorreria no ano seguinte, 1923.As fotos do Corpo de Bombeiros, perto do Campo de Santana, e da rua da Assembleia, no Centro da cidade, mostram as linhas de bonde que serviam a região. Perto dali estava o cenário da carta 7 de espadas: o Canal do Mangue, na época valorizado como área de passeio e lazer. Recentes reformas urbanas haviam modernizado diversas localidades, e ganham destaque no baralho – não podia faltar a avenida Rio Branco, na altura da praça Floriano Peixoto (Cinelândia), com o Theatro Municipal ao fundo. Duas cartas mostram a orla sinuosa da enseada de Botafogo, com seu casario e o calçadão urbanizado.O naipe de copas traz uma abordagem diferente, com uma sequência de fotografias noturnas. O gigantesco Palace Hotel, no Centro, e o Hotel Central, na Praia do Flamengo, exibem as luzes da iluminação pública. Construções ecléticas que adornavam a avenida Rio Branco desde o início do século, como o Theatro Municipal e o suntuoso Palácio Monroe (que seria demolido em 1976), também aparecem com seus contornos iluminados. A legenda da carta do Palácio Monroe esclarece que a foto retrata a visita do rei Alberto da Bélgica ao Brasil, ocorrida em 1920. Na ocasião, as autoridades e a população se mobilizaram para mostrar ao monarca europeu o que havia de melhor e mais civilizado em nosso país. A carta de número 8 tem um toque romântico: é o “Luar na Praia da Gávea” (hoje São Conrado) deixando um rastro prateado nas ondas da arrebentação. E do alto do Corcovado, sem o Cristo Redentor, vê-se também a luz da lua entrando pela enseada de Botafogo, por trás do Pão de Açúcar.No naipe de paus predominam fotografias de prédios e monumentos. A imagem da Igreja de São Sebastião dos Capuchinhos, no alto do morro do Castelo, é mais um registro importante de um pedaço do Rio que não existe mais. Na carta de número 3 está a rua Paissandu, no Flamengo, que com suas emblemáticas palmeiras imperiais era conhecida no século XIX como rua da Princesa. Tinha este nome porque ligava a praia do Flamengo e o Palácio Guanabara – hoje sede do Governo do Estado, na época residência da princesa Isabel e do conde D’Eu. A rua fora aberta e arborizada a pedido de Isabel, para que ela pudesse passear à sombra. O Palácio Guanabara estampa o 9 de paus, mas não há referência ao casal imperial — ex-moradores ilustres, mas de um tempo ultrapassado. A legenda opta por referir-se a outra realeza: “Palácio Guanabara, onde hospedou-se o Rei dos Belgas”. Um dos principais cartões-postais do Rio, “Caminho Aéreo Pão de Açúcar”, o famoso bondinho, também integra o naipe de paus. O ousado projeto de engenharia foi inaugurado em 1912.Duas fotos descritas como “Ressaca na Avenida Beira Mar” abrem a sequência de ouros. No final da avenida Central, em frente ao obelisco, ondas fortes estouram no calçadão e invadem a pista em um trecho que hoje está algumas centenas de metros distante do mar. Curiosa é a escolha da fotografia do “Dreadnought São Paulo”, embarcação conhecida como “Encouraçado”. O imponente navio de guerra foi comprado pelo governo brasileiro em 1906, com o objetivo de colocar nossa Marinha entre as mais bem equipadas do mundo. O “Encouraçado São Paulo” esteve em grandes momentos da história nacional, como a Revolta da Chibata (1910), e transportou o onipresente rei Alberto da Bélgica, que nele patrulhou nosso litoral durante a Primeira Grande Guerra.Embora o baralho retrate basicamente a capital da República, duas cartas destoam do conjunto: o 10 e o valete de paus trazem paisagens paulistas – respectivamente o Theatro Municipal e a Estação da Luz. Há ainda uma imagem de Petrópolis, mas esta pode ser considerada uma extensão da temática, afinal a cidade serrana era o destino de grande parte da elite carioca durante o verão.Por fim, o coringa: a imagem da palmeira plantada pelo príncipe regente D. João no Jardim Botânico em 1809 (que cresceria até alcançar mais de 38 metros de altura e acabar fulminada por um raio em 1972).O centenário da Independência, que inspira o baralho, foi um evento cercado de grande importância para a memória e a identidade nacional, comemorado com toda a pompa em um momento de grave crise política. Movimentos como a Reação Republicana – que lançou Nilo Peçanha candidato à Presidência em 1921 – e o Tenentismo – que em 1922 promoveu o levante dos “18 do Forte” – levaram o governo a decretar estado de sítio, que perdurou durante grande parte do mandato de Arthur Bernardes (1922-1926). Diante deste cenário, as autoridades não pouparam esforços para realizar uma festa memorável, culminando com a Exposição Universal do Rio de Janeiro. Em uma área de cerca de 2.500 m², proveniente da demolição do morro do Castelo, foram construídos pavilhões monumentais para expositores de vários países. Aberta de setembro de 1922 até abril do ano seguinte, a exposição simbolizava a tentativa de inserção do país no cenário das nações civilizadas e modernas, em oposição a uma imagem de “atraso” associada à maior parte do nosso território.Não é possível saber se o baralho, editado “com exclusividade” por Francisco Carneiro, relaciona-se diretamente com a exposição, se foi vendido, dado como brinde ou se não tinha ligação alguma com o evento. O fato é que ele se apresenta como souvenir, uma lembrança personalizada que turistas poderiam levar de volta para casa. Atualmente, mais do que uma memória da cidade maravilhosa, essas cartas da Belle Époque carioca podem ser um indício do papel central do Rio, então capital federal, no esforço republicano em construir uma imagem da nação brasileira.
O Rio dá as cartas
Lia Jordão