O sertão da tradução

Jorge Coli

  • A aventura de traduzir Os sertões de Euclides da Cunha para o francês foi a seguinte: Antoine Seel, francês, intelectual brilhante, dominando perfeitamente o português, e eu próprio assinávamos, em conjunto, os artigos que o jornal Le Monde publicava sobre literatura brasileira. No início dos anos 1980, as traduções francesas de ficção escrita no Brasil se multiplicavam, e isso justificava uma colaboração regular, especializada na questão. Eu conseguira mesmo que o jornal publicasse duas páginas inteiras sobre a situação da literatura no Brasil. Foi esta nossa presença nas páginas do Le Monde que levou a editora Gallimard a nos convidar, a Antoine Seel e a mim, para traduzirmos Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos. Depois desse trabalho feito, a editora Metailié nos propôs um contrato para Os sertões, de Euclides da Cunha.

    Está claro que nós prevíamos que as dificuldades seriam muito maiores que diante da escrita límpida de Graciliano Ramos. Nesta, os problemas situavam-se à volta do caráter elíptico (supressão de termos), concentrado, cheio de anacolutos, das frases sem verbo: era preciso proceder a um desbaste na tendência que a língua francesa possui de explicitar. Mas, uma vez encontrado o tom, era ir em frente, como uma locomotiva nos trilhos.

    No caso de Euclides da Cunha, foi diferente. Primeiro, uma inverossímil riqueza de vocabulário. Palavras arcaicas se sucedem a termos científicos raros, a regionalismos, a neologismos muito singulares e de difícil compreensão. O estilo é admirável, mas retorcido, complexo, em que frases longuíssimas dividem o mesmo parágrafo com outras enxutas, às vezes de uma palavra só. Há em Euclides uma lembrança de latinista: como no discurso ciceroniano, a ordem indireta muitas vezes impera, dispondo o verbo em posições esdrúxulas, dentro do percurso sinuoso que traçam oração e parágrafo.

  • Existia uma tradução francesa, anterior, datada de 1947, feita com amor por Sereth Neu. Porém, ela caíra numa armadilha que nós queríamos evitar. Transpusera para o francês as longas frases, cheias de meandros, dando-lhes clareza, picando-as com ponto final; escolhera sempre a ordem direta; evitara as palavras raras. Ela simplificara e, involuntariamente, traíra.

    Como vencer a passagem de uma língua para a outra, sem enfraquecer por demais o original? O partido foi de obedecer, quando fosse possível, às estruturas retorcidas e não hesitar diante de um vocabulário raro, arcaico, técnico. Apenas nos recusamos a neologismos. Tomamos o partido de um glossário, que foi inserido no fim da edição, onde se encontravam os regionalismos, respeitados, sem nenhuma tentativa de aproximar o texto de equivalências aproximativas. No resultado final, está claro, permanece, para nós, a consciência que se trata de um eco, talvez enfraquecido, mas que buscou conservar a dinâmica torturada do original.

    Uma outra dificuldade é que não existia, e não existe até hoje, uma edição comentada da obra. Ora, n’Os sertões, o número de citações teóricas é muito grande e elas são determinantes. Muitas, presentes na cultura do tempo, são para nós, hoje, por demais obscuras. Eram essenciais para Euclides da Cunha, porém. Assim, o último capítulo do livro, feito de uma única frase, espécie de vórtice para onde, aos poucos, a obra fora se reduzindo do geral ao particular, diz o seguinte: “É que ainda não existe um Maudsley para as loucuras e os crimes das nacionalidades...”. Quem é esse Maudsley? Que leitor pode responder, de imediato, à questão? Era preciso, pensamos, construir um conjunto de notas que explicasse essas referências teóricas. Por sinal, algo semelhante ocorrera com Memórias do cárcere. Não se tratava, aqui, de referências eruditas, mas de um enxame de personagens reais que participaram, de longe ou de perto, da trajetória do autor, personagens que era necessário identificar para apresentá-los ao leitor. Neste sentido, as edições francesas possuem um aparato de informações ausente de qualquer edição brasileira.

  • Os sertões se horroriza com a ferocidade, com a carnificina, mas há, nesse horror, um prazer inconfesso. Nisto, o livro mostra-se fruto de seu tempo. Para além das classificações habituais dos movimentos literários ou artísticos – parnasianismo, simbolismo, decadentismo, entre outros – perpassa, nas décadas finais do século XIX e nas primeiras do século XX, uma sensibilidade apurada e saturada, carente de experiências fortes, que explorou a própria deliqüescência. Em À rebours (1884), o romancista francês Joris Karl Huysmans (1848-1907) traça o retrato dos antepassados de seu herói, “athlétiques soudards” (“atléticos soldados”) para melhor relevar a fragilidade doentia e nervosa do protagonista contemporâneo, ávido de volúpias. Em resposta a estes desejos de emoções fortes, dos Poèmes barbares (1862) de Leconte de Lisle (1818-94) à Sagração da primavera, de 1913, composição do russo Igor Stravinski (1882-1971), os artistas procuraram emoções violentas, primitivas, “bárbaras”, vazadas na mais sofisticada das linguagens, em que erotismo e crueldade se mesclavam, em nuances preciosas de cores, matérias, sensações. Os sertões é epopéia nascida nesses tempos de refinamentos perversos, em que a barbárie era moda.

    Na História da eternidade, o escritor argentino Jorge Luís Borges (1899-1986) analisa traduções das 1001 noites, e caracteriza aquela feita por volta de 1900 pelo dr. Mardrus: o texto adquiriu novas configurações culturais, em que convivem, diz Borges, Salammbô e os balés russos. Isto ocorre também com Os sertões. Neste mundo das traduções, Leconte de Lisle é ainda sugestivo. Ele traduziu incessantemente os gregos: Teócrito (1861), Homero, a Ilíada (1866) e a Odisséia (1867), Ésquilo (1872), Sófocles (1877), Eurípides (1885). Lecomte de Lisle transpõe esses textos para um clima ao mesmo tempo bárbaro e requintado. Ele reescreve o nome dos personagens, abandonando as formas banalizadas pela tradição: Akhilleus por Aquiles, Athènaiè por Atenas, Pènélopéia por Penélope, e assim por diante. Essas formas introduziam um sabor ao mesmo tempo arcaico e precioso. Na mesma direção, há um prazer suplementar em ler Os sertões nos velhos livros impressos com a ortografia antiga, cheia de consoantes duplas, ph, th, y, k, w, Coerente com o apuro e a estranheza vocabular de Euclides da Cunha, esse modo de escrever lhe era caro; falta-nos uma rigorosa edição crítica, recente, que conservasse a ortografia em que o livro foi escrito, o que complementaria, de modo justo, pelo modo de grafar, o espírito do escrito.

  • O clima artístico, estético, das barbáries desejadas, que evoquei aqui, não era avesso às ciências. Ao contrário, as artes incorporaram um prazer perverso oriundo da frieza científica, cruel em nome do saber. No Brasil, uma outra grande obra, um quadro, oferecia um exemplo radical. O Tiradentes esquartejado (1894), obra de Pedro Américo (1843-1905), legitimava-se no rigor de uma leitura histórica não enfática ou apologética, mas “científica”, objetiva, e dispunha o corpo cortado com uma frieza de anatomista. Os sertões mostra-se menos clean, e a decapitação de Antônio Conselheiro, líder do Arraial de Canudos, feita no fundo da cova, revelou “a face horrenda, empastada de escaras e de sânie”. A caatinga é vista como um jardim dos suplícios, para evocar aqui o livro do jornalista, romancista e dramaturgo  francês Octave Mirbeau (1848-1917), Jardin des supplices, de 1898, cruel, perverso mas, de certa forma, delicioso. Nossa epopéia fin-de-siècle também está prenhe de evolucionismo, de violências naturais, de uma história humana iniciada em âmbito geológico, biológico, animal. Isto não lhe é exclusivo: artistas de todas as artes, e dos maiores, foram, naquela época, afetados por essas energias ao mesmo tempo científicas e primitivas: basta lembrar Rodin e seu Homem que anda ou seu Pensador.

    Mas, de fato, nenhum livro revela tanto os poderes da escrita. Em Os sertões, o estilo não é algo que se acrescenta às idéias, às intuições, às observações, às análises e à memória. A escrita impõe a Euclides da Cunha um tal rigor, e fornece uma tal força, que ela se encarrega de contrariar as idéias abstratas, as convicções teóricas do autor. Ela constrói um mundo dinâmico, feito de expectativas e de revelações, de estreitezas e aberturas, onde tudo está fundido em palavras espessas, cuja massa incorpora tudo num só amálgama. Espessura poética, sem dúvida, carregando em si, porém, ciência, conhecimento empírico, processos explicativos, entendimentos fulgurantes. É impossível, aqui, separar forma do conteúdo. Escrita e estilo não se submetem ao autor, eles se impõem como o campo primordial: são eles os agentes criadores.

  • É possível perceber essa barbárie primordial de modos diversos. Euclides da Cunha refere-se à “proverbial indiferença com que nos volvemos às coisas desta terra, com uma inércia cômoda de mendigos fartos”. Para que nós, leitores, que somos estes mendigos indignos e repletos, possamos acordar, fazem-se necessárias imagens poderosas, truculentas. Por outro lado, o rigor científico afasta o que Euclides da Cunha chama, de modo implacável, de “nossa sentimentalidade suspeita”, e autoriza uma brutalidade indiferente de necropsia. Pode-se pensar também que o autor é um desiludido da República, ao menos tal como ela se iniciava, e que a campanha de Canudos significou um fracasso nas crenças em um expansionismo e em uma pedagogia da civilização. No entanto, mais sutil que convicções e idéias, a barbárie infiltra-se no texto, embebendo-o e provocando uma embriaguez perturbadora.

    Euclides da Cunha, republicano, espírito positivo e científico, imbuído de teorias racistas, que hoje esperamos estejam caducas e mortas, tenta compreender um acontecimento excepcional pela descrição e pela análise. Aí está seu rigor. Não é fiel às idéias, que continuam em sua cabeça. É fiel à escrita, que brota da mão. É fiel ao estilo, ao mesmo tempo épico e preciso. A frase forte e rigorosa trouxe-lhe a força e o rigor da análise. Em seu livro, o fluxo da escrita conduz o fluxo interpretativo. As palavras subvertem em permanência, pois nelas se encontra a inteligência analítica. A palavra que ilumina se incendeia no particular. Contradiz a generalidade e, com freqüência, se contradiz a si própria, anulando pressupostos, condenando duas barbáries opostas, misticismo e modernidade, fazendo se chocarem e se aniquilarem razão e loucura. Euclides da Cunha afirma axiomas, mas sua escrita os desmente, denunciando, no seu percurso detalhado, a estreiteza e falsidade dos pressupostos teóricos, das certezas convencidas, das verdades proclamadas.

    Jorge Coli é professor titular do departamento de história da Universidade de Campinas (Unicamp) e autor de A paixão segundo a ópera (Perspectiva, 2003), e Ponto de fuga (Perspectiva, 2004).