Os preparativos para as comemorações do Centenário da Independência, em 1922, foram marcados por campanhas na imprensa, uma profusão de estudos, publicação de livros e álbuns fotográficos, além da confecção de um sem-número de objetos comemorativos. Sem esquecer, é claro, a organização de uma exposição internacional na capital federal, destinada a exibir ao mundo o progresso e a civilização da nação em construção. Se para alguns a “feira” do centenário ofereceu ocasião para ridicularizarem nossas pretensões, para outros ela representou rara oportunidade de exibir feitos e realizações. Com esta intenção, a Comissão Construtora de Linhas Telegráficas de Mato Grosso, que ficaria mais conhecida pelo nome de seu comandante – Comissão Rondon –, ergueu um estande na Exposição reunindo parte da farta documentação sobre os trabalhos de construção de linhas telegráficas, pontes, estradas e assentamentos de colonos realizados, ao longo de décadas, nos sertões do Brasil central.
Especialmente para essa ocasião, a Comissão Rondon concebeu e organizou o álbum Photographias da construção, expedições e explorações desde 1900 a 1922, oferecendo aos visitantes uma síntese, ou resumo visual, dos seus trabalhos técnicos. Por meio da seleção e da organização seqüencial de fotografias, o álbum elabora uma nova realidade, divide o tempo entre um suposto “antes” e um “depois”, permitindo um distanciamento do sertão do passado e reafirmando o poder da civilização e da técnica. Organizado em dois volumes, o álbum pretendia ser o registro das etapas vencidas pela Comissão na “civilização do sertão”, elaborando uma cronologia visual para esse processo: nas primeiras fotografias, encontra-se um sertão ainda “bruto”, “obscuro” e “selvagem”, representado pela natureza virgem e densa; a partir de 1914, sob o título “o sertão atual”, aparecem imagens das estações telegráficas inauguradas e em funcionamento, as estradas e pontes construídas, os índios estudando e trabalhando. As fotografias são utilizadas nesse álbum como prova e testemunho do impacto das transformações provocadas por duas décadas de atuação da Comissão, construindo uma narrativa visual que exalta a mudança, o progresso e a civilização. Além, é claro, de evocar o pioneirismo de Rondon e seus comandados, moldando a imagem de desbravadores modernos que, movidos por idealismo e bravura, venceram todos os obstáculos à domesticação de terras e homens. A seleção e a disposição das imagens, acompanhadas de legendas que orientam a leitura no sentido pretendido, realçam os aspectos desejados, localizam geograficamente o leitor e enfatizam curiosidades ou dados técnicos mais específicos sobre os temas fotografados.
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Algumas fotografias exaltam a luta “titânica” de Rondon e seus comandados contra a natureza bravia e indomável, enfatizando a supremacia da técnica e da ciência ao documentar cenas de trabalho mecânico e o seu domínio sobre a natureza revolvida, a mata “rasgada” por picadas e estradas e marcada pelos sinais visíveis da expansão e da conquista promovidas pela Comissão Rondon. Outras imagens chamam a atenção exatamente porque destoam do conjunto reunido no álbum, apresentando os acampamentos como lugares aprazíveis e agradáveis, de maneira aparentemente encenada.
Duas fotografias feitas pelo fotógrafo Joaquim de Moura Quineau em 1908, no acampamento do Rio Candeias, impressionam pela riqueza cênica da composição. Além de elementos da natureza, estão presentes os “sinais” da civilização: cadeiras e mesa, roupas, chapéus e botas lustrosas, o violão e, acima de tudo, um aparelho de chá em plena selva amazônica. A legenda que acompanha uma das fotografias informa que “mesmo na floresta, havia sempre um dia de regozijo”, como nesta comemoração pela inauguração de um trecho da linha telegráfica (Foto 5). De quem terá sido a idéia de reunir doze homens e uma criança em torno de uma mesinha de chá, embalados pelo som de um violão dedilhado em plena mata? E quais as suas motivações? O que teriam pensado esses homens, duros comandantes de contingentes de trabalhadores civis e soldados sertão afora, durante os minutos em que, imobilizados, encaravam o fotógrafo? Mas o dia não havia acabado, ainda havia luz suficiente para mais fotografias, e então se prepararam para outra pose, desta vez em torno de uma mesa construída com troncos, cuidadosamente preparada com frutas e bebidas para um “banquete fornecido pelas primícias da mata”, diz a legenda. Agora, “improvisa-se a música”, com o violão fazendo-se acompanhar pelo acordeão, toda a festa emoldurada pela mata fechada. Mas ninguém toca (os instrumentos apenas repousam nos bancos); ninguém come, todos olham para a câmera (Foto 6).
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Três anos depois, outro grupo de oficiais posaria no mesmo local para as lentes de outro fotógrafo num cenário também idealizado. Em uma versão, quatro militares aparecem bem vestidos e penteados, com uma postura altiva; dois deles sentados em cadeiras de lona e ladeados pelos demais. O oficial à direita, capitão Sebastião Pinto da Silva, apóia o braço, de modo aparentemente displicente, sobre uma mesinha dobrável, onde está aberto um jornal, sugerindo a interrupção da leitura. No centro da foto, entre os personagens, uma tabuleta enfeitada com um arranjo com folhas de palmeiras e de outras árvores da região funciona como sua legenda e informa, talvez, o motivo da foto: “Salve 1912 – Acampamento Candeias” (Foto 3). Em uma versão que a complementa, todos os oficiais aparecem sentados em primeiro plano (o jornal sai de cena), com oito trabalhadores em pé, decentemente vestidos e penteados, olhando fixamente para o fotógrafo (Foto 4). Observando-as mais atentamente, percebemos que atrás dos homens em pé foi colocada uma faixa de tecido escuro para delimitar o cenário, completado por folhas de palmeiras e folhagens que, fincadas no chão, enquadram e delimitam a composição da cena. Em vez da natureza selvagem e indomável da região amazônica que tantos obstáculos proporcionou aos trabalhos da Comissão, montou-se um cenário com elementos naturais, de maneira mais harmoniosa ou, talvez, mais civilizada. Todos esses elementos plantas, jornal, roupas, mesas e cadeiras comuns nas fotos feitas em estúdios fotográficos nas cidades, juntamente com a estudada indiferença dos fotografados em relação à presença do fotógrafo (dos quatro, apenas um fixa diretamente a câmera), indicam uma intenção de aparentar descuido, despreocupação e acaso, como se o fotógrafo os surpreendesse numa conversa despreocupada no fim do dia.
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Nos relatórios oficiais sobre os trabalhos de construção das linhas telegráficas nas “selvas” do Alto Madeira, além de livros de memórias de oficiais que participaram da missão, não há menções a cenas como as “reproduzidas” por essas fotografias. Ao contrário, é comum encontrar relatos sobre as diversas dificuldades enfrentadas fome, doenças e mortes nos acampamentos, extravios de expedicionários nas matas, fugas e revoltas de praças e trabalhadores , além do ritmo intenso impresso ao trabalho de construção da linha telegráfica entre Santo Antônio do Madeira e Pimenta Bueno. As realidades construídas por essas imagens – em que comandantes militares posam como exploradores recém-saídos das páginas de alguma revista ilustrada – causam ainda maior estranheza se contrapostas a outras fotografias também produzidas por Quineau durante a expedição de 1908. Nas fotografias (Foto 7) feitas no acampamento à margem do Rio Jamari, próximo a Porto Velho, a diversidade étnica e social dos trabalhadores que compunham a expedição torna-se evidente: negros, índios, brancos, crianças, feridos, maltrapilhos e descalços, amontoados contra o pano de fundo da floresta, encarando a câmera com seriedade, quase com desafio. Nessas imagens, a natureza está sempre presente, ainda indomável, impenetrável.
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Quando a abordagem da fotografia parte do pressuposto de que, como qualquer outra linguagem, ela não é neutra e expressa relações sociais, políticas e ideológicas, é preciso fazer novas perguntas para desvendar as condições históricas nas quais ela foi produzida. Em vez de buscar apenas aquilo que elas mostram, cabe esmiuçar os significados das escolhas realizadas no ato de registrar pessoas e paisagens de uma forma ou de outra, para não tomá-las como documento fiel do real, “tal qual ocorreu”. Dessa maneira, essas imagens ganham novos sentidos se indagarmos sobre as motivações da Comissão Rondon para produzi-las, se procurarmos indícios dos usos que fizeram delas em relatórios de prestação de contas, álbuns fotográficos comemorativos, e também na “divulgação” das mesmas para jornais e revistas em diversas cidades. Publicadas em meio a textos e no diálogo com outras páginas de jornais e revistas ilustradas, que efeitos de realidade elas construíram? Será que foram publicadas como “provas” e tiveram o poder de neutralizar as dúvidas e críticas levantadas pelo Jornal do Commercio do Rio de Janeiro em 13/11/1911, para o qual faltava “uma prova real da eficácia e serventia da comissão”? Ou seriam usadas “todas as vezes que os jornais do Rio publicavam notícias alarmantes (o que era freqüente) sobre assuntos da Serra dos Parecis e das selvas do Alto Madeira”, como registrou o general Lobato Filho em seu livro de memórias? Será mera coincidência que a Comissão tenha iniciado, nos anos 1910, uma série de publicações, fartamente ilustradas com fotografias e desenhos, divulgando os resultados de seus trabalhos em várias áreas do conhecimento? Ou, ainda, que a criação de uma Seção de Fotografia e Cinematografia no Escritório Central da Comissão, no Rio, tenha se concretizado em 1912, exatamente quando precisavam rebater com mais veemência as críticas que recebiam?
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Algumas imagens da Comissão foram também publicadas com relativa freqüência em jornais cariocas e paulistanos, ilustrando reportagens, entrevistas e propagandas da exibição dos seus filmes. A Comissão soube definir e implementar uma estratégia de divulgação dos seus trabalhos via telegramas às redações de jornais, encaminhados da última estação telegráfica construída, anunciando “descobertas”, comunicando os quilômetros de linha concluídos, as inaugurações e comemorações cívicas, sempre acompanhadas de fotografias que “atestavam” as informações. Fotografias também foram projetadas, por meio de diapositivos, em palestras e conferências proferidas por Rondon em diversos momentos e regiões, nas apresentações de seus trabalhos em congressos de Geografia e Antropologia e, juntamente com mapas e a exibição de filmes, divulgou a Comissão nas exposições nacionais de 1908 e 1922. Toda essa rede de articulação das fotografias com outros meios de comunicação, como a imprensa e o cinema, e também outras práticas e experiências sociais da Comissão Rondon precisam ser levadas em consideração para recuperar sua capacidade de constituir formas de olhar, de narrar por meio de imagens e textos, de informar e moldar opiniões naquela sociedade.
Para que o conhecimento histórico produzido a partir de fotografias não se limite à ilustração de paisagens, personagens e histórias, é preciso buscar as relações entre a imagem e o grupo que a produziu, indagando sobre as razões, as escolhas, as condições, contradições e conflitos de sua produção, reprodução, impressão e divulgação. O cuidado, portanto, é não referendar as escolhas temáticas, os arranjos de imagens e a composição de uma narrativa e uma memória criadas pelos fotógrafos e pela Comissão Rondon. Afinal, a fotografia, mesmo aquela que pretende ser uma cópia fiel da história acontecida, expressa as escolhas do fotógrafo (e, em alguns casos, daqueles que o contratam), os interesses e as intenções que definiram a produção de um registro visual. Sendo assim, as imagens também precisam ser interrogadas, da mesma forma que outros documentos históricos, para evidenciar quem as produziu e com quais finalidades, pois, como práticas sociais, as fotografias não se separam do tempo histórico em que foram realizadas nem dos interesses, valores e projetos que orientaram sua elaboração.
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É fundamental desvendar os sentidos da produção e do uso das imagens em seu próprio tempo, pela Comissão Rondon e pelo Serviço de Proteção aos Índios – SPI (1910), mas não é menos importante analisar o movimento aparentemente aleatório de reunião e acúmulo dessas fotografias, os interesses em torno de sua reprodução em diferentes momentos – como em 1922 –, bem como os projetos e iniciativas que reivindicam o papel de continuadores da “obra de Rondon” ainda hoje. Por isso, na análise, tem-se que levar em consideração o caminho que fez com que essas imagens sobrevivessem até hoje.
Neste sentido, é importante ressaltar a atuação do Museu do Índio, comprometido com a preservação de uma memória do indigenismo desde a sua criação, em 1953, e que se tornou um espaço importante para a reunião e a preservação de todo o acervo documental constituído no interior daqueles órgãos criados e dirigidos por Rondon. Por meio de critérios de seleção, organização e divulgação dessas imagens, essa instituição é parte do circuito que, no presente, alimenta uma determinada memória da Comissão Rondon. Celebrada nas cerimônias escolares por ocasião do “Dia do Índio”, inscrita na paisagem das cidades, materializada em monumentos e documentos (continuamente reproduzidos e divulgados), essa memória sobre Rondon ainda parece ser capaz de se manter viva e de se renovar.
LAURA ANTUNES MACIEL é professora do Departamento de História da UFF e autora de A nação por um fio: caminhos, práticas e imagens da ‘Comissão Rondon’ (Educ/Fapesp, 1998).
O sertão domesticado
Laura Antunes Maciel