Obscuro visionário

Henrique Duarte Neto

  • Capa e frontispício de Eu e outras poesias. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)Morte e mistério. A poesia de Augusto dos Anjos (1884-1914) parece carregar em seus versos estes dois polos de atração. O primeiro tem no cemitério o cenário em que deixa de ser mera ameaça para se tornar realidade suprema. O segundo habita a noite, onde surgem as questões incompreensíveis. O uso de termos como visionário, destino, esfinge e trevas corroboram a tese de que o poeta se coloca diante de questões de natureza metafísica.

    No soneto “Solilóquio de um visionário”, o que se devassa ultrapassa uma apreensão puramente material. Augusto dos Anjos explora no poema a transcendência do olhar:

    Para desvirginar o labirinto
    Do velho e metafísico Mistério,
    Comi meus olhos crus no cemitério,
    Numa antropofagia de faminto!

    Para além da autofagia e da metáfora grotesca, o que se delineia no soneto não é um descolamento do mundo, mas uma tentativa de compreendê-lo. Visa atingir a essência, romper a superfície e o figurativo, ultrapassar a realidade objetiva para tentar explicar como se regula o processo que leva à inapelável decomposição de toda a vida orgânica. O poeta privilegia o mistério acerca do destino dos seres e do universo. Faz poesia metafísica, enfim.

    Mas Augusto dos Anjos também traz para o leitor a esfera mais imediata e cotidiana da realidade. A utilização de palavras e expressões coloquiais, sem registro poético até então, é um traço estilístico do autor que antecipa o modernismo em nossas letras. Este não é o único aspecto de vanguarda em sua obra. Há as rimas inovadoras – e mesmo dissonantes – as elipses entre estrofes e versos, as metáforas grotescas.

    Muitas vezes é o próprio vocabulário que sugere a dilaceração tanto dos corpos como da linguagem, o que no segundo caso, principalmente, revela a faceta moderna do autor. No poema “Queixas noturnas”, por exemplo, ele se utiliza de variantes dos verbos romper, arrancar, esmagar, dilatar, torcer, tombar, estorcer e estrangular. Esta característica, somada a outras, como a recorrência de hipérboles e superlativos, faz com que sua poesia seja marcada por atmosferas de tensão e pelo desenvolvimento constante de um clímax expressivo.

    Intensidade que ganha contornos máximos quando o “poeta do Eu” descortina a noite, uma de suas paisagens privilegiadas. A palavra noite (e suas derivações) é enfatizada constantemente em sua obra. Torna-se uma espécie de cenário onde ocorrem desagregações, despedaçamentos, misérias e dúvidas metafísicas. Quando a escuridão ganha o céu, cria-se o espetáculo propício para a expressão de um lado mais pessimista do poeta, e outro de natureza interrogativa.  Os questionamentos de Augusto dos Anjos estão relacionados ao mistério cósmico. Em“Poema negro”, ele indaga: “Quem sou? Para onde vou? Qual minha origem?”. São perguntas relacionadas às próprias fontes da vida e, em geral, permanecem sem resposta, numa espécie de jogo sem fim.

    O pesadelo, de Johann Heinrich Füssli. (Imagem: Reprodução / Original do Museu Goethe - Frankfurt)Em outra porção de sua poesia, no entanto, também constrói “verdades” sobre a vida universal e sua dissolução. É quando toma como verossímil, por exemplo, a ideia de Nirvana, de não ser, de desfecho dos seres no nada. A morte, semeadora de cadáveres por toda parte, leva a um inapelável desmoronamento do ser. De tudo emana uma “teleologia sem princípios”, em que o fim da vida, consumando a entropia (desorganização cósmica), faz até dos princípios elementares da matéria um dínamo falho, como em “Noite de um visionário”:

                    O motor teleológico da Vida
                    Parara! Agora, em diástoles de guerra,
                   Vinha do coração quente da terra
                   Um rumor de matéria dissolvida

    Nos momentos de maior crise da existência cósmica – como esta noite visível somente ao olhar desnaturalizado do visionário – tudo se dissolve: o carbono, o ar, os astros, o próprio espaço, em um espetáculo de catástrofes monumentais e apocalípticas.

    O homem, que possui a “aziaga contingência” de raciocinar, é visto como uma espécie à parte, que pode vislumbrar seu destino, ao contrário dos outros seres. Por isso mesmo, é aquele digno de maior lástima, pois não pode fazer nada para alterá-lo. Apesar de apontar em alguns momentos para uma potencialidade abortada nos seres minerais, vegetais e animais, o poeta propõe que o melhor seria afundar na inconsciência do reino dos seres brutos:

                            Ah! Por que desgraçada contingência
                            À híspida aresta sáxea áspera e abrupta
                            Da rocha brava, numa ininterrupta
                            Adesão, não prendi minha existência?

    O ideal de uma existência presa ao mundo sem sensações das pedras encontra-se em dissonância como as palavras do segundo verso, fruto de uma verdadeira “mineralogia” poética. Diante de tudo o que antevê, o poeta, feito visionário, prega que “o mundo fique imaterializado”. Justamente porque é o flagelo de possuir um corpo, de ser um composto orgânico, que leva ao sofrimento e à queda inevitável. Numa máxima: ser é sofrer. Por isso o anseio pelas “quietudes nirvânicas mais doces”. Ou, em outras palavras, o apagamento no nada.

    Ao fazer uso do grotesco, Augusto dos Anjos, em gravura acima, explora uma interioridade para além da realidade objetiva. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)O que se coloca muitas vezes como sinal de mistério é a impossibilidade do olhar figurativo, aquele composto na retina, que foca os seres objetivamente através das sensações óticas. Expõe-se mesmo uma degradação do olhar. Tal como em “Solilóquio de um visionário”, tenta-se, ao eliminar o sensório, buscar uma forma especial de captação do que está distante do plano físico. O que Augusto dos Anjos persegue é um olhar para além do olhar.

    Não é à toa que, em muitos outros momentos, expõe a degradação dos olhos, como também do tato. E em algumas ocasiões propõe o encontro de uma forma especial de ver ou tocar. Como nesta estrofe de “Mistérios de um fósforo”, em que expressa uma espécie de supraolhar a devassar a própria gênese da vida:

    E afago mentalmente os olhos fundos
    Na amorfia da cítula inicial,
    De onde, por epigênese geral,
    Todos os organismos são oriundos.

    A expressão “olhos fundos” corrobora a ideia de que estamos lidando com uma fuga da perspectiva naturalista de encarar o real. Refere-se a algo transcendental. A noite simboliza este espaço do olhar não retiniano. O que se perscruta é o inominado por trás da “amorfia” (ausência de forma determinada), da “cítula” (desagregação de células) “inicial”. Muito atento ao discurso científico que tinha à mão na sua época, ele sobrepõe ao saber da ciência e da filosofia a interrogação, o mistério muito propício à seara da poesia.

    É uma verdade corrente entre os estudiosos de Augusto dos Anjos o fato de ele não ter assumido uma escola literária, nem ter sido acolhido por uma delas, mesmo após sua morte em 1914, aos 30 anos de idade. Isso não impediu, no entanto, que os críticos sempre fizessem paralelos e estabelecessem convergências entre sua poesia e diversas estéticas do período – ou anteriores e posteriores.

    Embora nunca tenha pertencido a uma escola literária, Augusto dos Anjos foi associado a muitos artistas, como o cineasta espanhol Luis Buñel. Acima, imagem do filme O cão andaluz. (Imagem: Reprodução)Assim como há rastros barrocos em “Mistérios de um fósforo” – com a simbologia cristã das cinzas (“És pó e ao pó voltarás”) – também há a presença do agônico de feições românticas em muitos de seus poemas. Mais nítidas são as semelhanças e as possíveis analogias com escolas estéticas que fogem da representação colada ao figurativo. Na constante busca da dissonância e da deformação, o “poeta do Eu” é expoente de uma tradição artística que prefigura o antimimetismo, ou seja, rompe com a representação colada aos dados sensoriais, à realidade figurativa. O simbolismo, com a inflação do eu – que se torna cósmico – com a atração pelo gouffre – abismo – e pela morte. O expressionismo, que o poeta muito provavelmente não conheceu, mas cujos traços se fazem presentes na série de poemas nos quais irrompem o grotesco, a metáfora ousada, a palavra bárbara. E também o surrealismo, que ele anteviu em poemas geniais como “Tristezas de um quarto minguante” e “As cismas do destino”: cenas de dilaceração (“Duas, três, quatro, cinco, seis e sete/ Vezes que eu me furei com um canivete,/ A hemoglobina vinha cheia de água!”) parecem saídas de um filme de Buñuel, como O cão andaluz (1929).

    As facetas da obra de Augusto dos Anjos, muitas vezes sobrepostas, resultam em uma poesia ricamente povoada. As águas onde o poeta navega são profundas e densas, e podem revelar achados magníficos. Mesmo que, eventualmente, adentre numa zona de rarefação e certa exorbitância.

    Henrique Duarte Neto é autor de A noite enigmática e dilacerante de Augusto dos Anjos. Blumenau: Nova Letra, 2011 e da tese “Dentro da Noite Funda: Enigma, Perda e Permanência na Poesia de Augusto dos Anjos” (UFSC, 2005).

    Saiba Mais:

    ANJOS, Augusto dos. Obra completa (org. Alexei Bueno). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996.
    GULLAR, Ferreira. “Augusto dos Anjos ou vida e morte nordestina”. In: Augusto dos Anjos. Toda poesia. 3. ed. revista. São Paulo: Paz e Terra, 1995.