Oficina para português ver

Jerônimo Duque Estrada de Barros

  • Não é fácil perseguir os passos sinuosos de Antônio Isidoro da Fonseca, um tipógrafo lisboeta que, em 1746, partiu para o Rio de Janeiro para fundar uma oficina tipográfica. Dificilmente os poderes inquisitoriais e régios autorizariam esse empreendimento e Isidoro teve de lançar mão de várias estratégias para produzir alguns folhetos, a maioria sem esconder o local e o ano de produção. 
     
    Acreditava-se que o tipógrafo teria atuado na cidade apenas em 1747, porque os documentos produzidos por ele só apresentavam aquela data, e porque se achava que as proibições régias daquele mesmo ano teriam sido suficientes para dar fim àquela oficina tipográfica. Em 2011, porém, a descoberta de um documento comprovou que a tipografia de Isidoro continuou em funcionamento.
     
    Trata-se do Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário..., impresso em 1748, oficializando a existência de uma irmandade negra na Capela de São Gonçalo, longe do Rio de Janeiro: na pequena cidade mineira de Catas Altas da Noruega.
     
    Antônio Isidoro da Fonseca era um conhecido tipógrafo em Lisboa. Há indicações de que sua oficina estivera ativa desde 1735, pelo menos. Até 1739, exibia o título de “impressor do duque estribeiro-mor” D. Jaime de Melo, mas ainda não está clara a natureza deste título nem da relação com o nobre. O certo é que, mesmo depois de abandonar o título, Isidoro continuou a imprimir em Lisboa até 1745. Produziu, entre outros, o primeiro volume da Bibliotheca Lusitana…, de Diogo Barbosa Machado (1741), e foi impressor de Antônio José da Silva, “O Judeu”, poeta e autor de peças teatrais, perseguido pela Inquisição. Essa relação rendeu suspeitas, nunca comprovadas, de que o próprio Isidoro da Fonseca fosse cristão-novo. 
     
    Ao partir para a América em 1746, sabia dos riscos da empreitada, mas certamente previa bons lucros. Era um mercado pequeno se comparado à metrópole, mas estava em crescimento e parecia promissor se fosse monopolizado por algum pioneiro. Por suas conexões com as demais regiões coloniais, o Rio de Janeiro seria a cidade ideal para tal empreendimento. Fundar uma imprensa colonial era extremamente difícil, pois havia em Portugal um rigoroso sistema de controle da produção de impressos. A política de censura era exercida pelos poderes reais, pelas autoridades seculares da Igreja e principalmente pela Inquisição de Lisboa. Por isso é surpreendente que o tipógrafo publicasse o local de impressão das obras. São indícios de que sua estratégia era bem mais complexa do que uma simples produção de folhetos clandestinos na América.
     
    Sabia-se há muito que Isidoro havia publicado pelo menos três documentos no Rio de Janeiro. Um deles é o relato da entrada cerimonial do Bispo Malheiro, vindo de Angola para assumir o bispado da cidade, em 1° de janeiro de 1747. O próprio religioso concedeu a permissão para imprimir esse folheto de 22 páginas, intitulado Relação da Entrada do Excellentissimo, e Reverendissimo Senhor D. Fr. Antonio do Desterro Malheyro... A obra é considerada a primeira comprovadamente impressa na América portuguesa. Um estudo recente descobriu ainda que houve ao menos quatro reimpressões do folheto – ou seja, versões diferentes, que indicam que o trabalho do tipógrafo na cidade foi mais ativo e duradouro do que se imaginava. O impressor também produziu um conjunto de louvores poéticos ao bispo, com 14 páginas. Era uma obra comemorativa, comum nas festividades do Antigo Regime e, em razão da sua função efêmera, é o único dos impressos atribuídos a Isidoro no qual não consta o local de impressão. 
     
    O terceiro impresso conhecido do tipógrafo no Rio é um resumo da tese de um aluno que se formava no Real Colégio das Artes, no Morro do Castelo. Escrito em latim em uma página, era para ser lido em voz alta durante a cerimônia de defesa de tese. Produzido também em 1747, nele não consta a aprovação da censura, mas os documentos internos dos colégios jesuítas não tinham essa obrigação. Sua singularidade está nas dimensões, 73x80 cm, e no fato de ter sido impresso em seda, indicando que era um objeto de valor.
     
    Notícias da oficina fluminense não demoraram a chegar a Lisboa e a reação do poder régio foi rápida: o Conselho Ultramarino – órgão que tratava de assuntos relativos às colônias – expediu, em 1747, ordens aos governadores do Brasil, principalmente ao do Rio de Janeiro, para que recolhessem e mandassem para a metrópole qualquer “letra de prensa” de que tivessem notícia em suas jurisdições. Mandou também que os responsáveis fossem notificados e, se voltassem a imprimir sem as licenças da censura, remetidos presos para Lisboa. Diante da contundência da reação régia, acreditou-se durante muito tempo que Isidoro da Fonseca não teria tido escolha a não ser retornar a Lisboa, mas não é o que mostram as descobertas mais recentes. 
     
    A primeira descoberta documental a contrariar essa versão se deve ao jornalista e historiador Alberto Dines. Nos anos 1990, ele localizou um processo inquisitorial depositado nos Arquivos da Torre do Tombo, em Lisboa. Iniciado em 1747 e visando reprimir a oficina, o processo é prova irrefutável de que Isidoro da Fonseca ainda estava no Rio de Janeiro, em março de 1749, quando assinou de próprio punho uma advertência da Inquisição, na qual se comprometia a não mais imprimir sem as “licenças” do Santo Ofício. Ao que tudo indica, só após a assinatura deste documento é que o impressor teria dado por acabada a sua aventura colonial. Em 2010, outra importante descoberta foi feita por Paulo Leme, funcionário da Torre do Tombo: uma tese em latim produzida em 1747 no Rio de Janeiro, mas destinada à formatura de um aluno do Colégio da Bahia. A tese teria sido aprovada por dois delegados da Inquisição em Salvador. Este documento, de oito páginas, abre novos horizontes: indica maior relação de Isidoro com os jesuítas e revela um alcance de mercado nunca antes imaginado para aquela oficina. 
     
    Encontrado durante a reforma da casa paroquial da Capela de São Gonçalo em 2009, e restaurado pela Universidade Federal de Minas Gerais, o Compromisso da Irmandade... mostra que Antônio Isidoro não só permaneceu no Rio de Janeiro, como também se manteve ativo pelo menos até 1748. Não é tecnicamente um livro, pois tem 39 páginas e é classificado como opúsculo. Ainda assim, é a mais extensa das obras desse período atribuídas ao tipógrafo. Nas páginas introdutórias é possível saber que o bispo Malheiro ordenou que o imprimissem. Se já se suspeitava que Minas Gerais seria um potencial mercado daquela oficina, agora é possível aprofundar esta hipótese. A aproximação do impressor com os poderes locais, como o bispo e os jesuítas, fazia parte de estratégia própria do período e era essencial para driblar os poderes metropolitanos, no caso, as censuras régia e inquisitorial. 
     
    Além do bispo Malheiro, que concedeu algumas licenças de impressão, e dos jesuítas, a tipografia de Isidoro é associada a outros dois importantes personagens: o governador Gomes Freire de Andrade, Conde de Bobadela, e o Sargento-mor e engenheiro-militar José Fernandes Pinto Alpoim. O primeiro porque concentrava poderes políticos suficientes para acobertar, proteger ou promover aquela atividade. Seria mesmo improvável que, após as proibições régias de 1747, o governador do Rio de Janeiro não soubesse da existência daquela oficina e da persistência daquele tipógrafo. Já Pinto Alpoim é relacionado ao caso porque o seu segundo livro, intitulado Exame de bombeiros, de 1748, é suspeito de exibir falso local de impressão. A obra dava continuidade a uma anterior, de 1744, intitulada Exame de artilheiros. Mas esse primeiro livro, depois de impresso em Portugal, foi mandado recolher, mesmo contendo todas as aprovações da censura. Em Exame de bombeiros, também aprovado pela censura, podemos ler a indicação de que foi impresso em Madri. Não era comum que uma obra liberada pela censura lusa fosse impressa na Espanha, e o fato de ter sido contemporânea da oficina de Isidoro deu motivos às especulações de falsificação.
     
    Em 1750, enfim de volta a Lisboa, Isidoro pediu permissão para retornar para o Rio ou para a Bahia, a fim de exercer sua profissão, saldar dívidas e sustentar a família. A petição foi recusada. Depois dela, a única informação que temos sobre o impressor é de 1756. Antônia Isidora de São José, sua filha, forja uma petição ao Conselho Ultramarino reclamando direito à parte da herança de um tio-avô materno residente em Minas. Este documento informa que o tipógrafo já havia falecido.
     
    Além de ajudar a compreender os limites da censura portuguesa, a ousadia de Antônio Isidoro revela que, mesmo no Brasil colonial, a cultura letrada já demandava a expansão da circulação de livros e impressos. 
     
    Jerônimo Duque Estrada de Barros é professor do Colégio de São Bento e autor da dissertação “Impressões de um Tempo: a tipografia de Antônio Isidoro da Fonseca no Rio de Janeiro (1747-1750)”, (UFF, 2012).
     
    Saiba mais
     
    DINES, Alberto. “Aventuras e desventuras de Antônio Isidoro da Fonseca”. In: Nachman Falbel et alii (org.). Em Nome da Fé: estudos in memoriam de Elias Lipiner. São Paulo: Perspectiva, 1999.
     
    ABREU, Márcia & BRAGANÇA, Aníbal (orgs.). Impresso no Brasil: dois séculos de livros brasileiros. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
     
    DARNTON, Robert. Edição e sedição: o universo da literatura clandestina no século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
     
    MORAES, Rubens Borba de. O bibliófilo aprendiz. Brasília/ Rio de Janeiro: Briquet Lemos/ Casa da Palavra, 1998.
     
    Internet
     
    Versão digitalizada da Relação da Entrada... Coleção Brasiliana USP: www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/03908100# page/1/mode/1up