- Imagine alguém percorrendo 200 quilômetros de uma região de rios, florestas e vales estreitos, a pé ou no lombo de uma mula. Com um facão, essa pessoa abre caminho na mata virgem, enfrenta cobras e outros animais, atravessa rios com correnteza dentro de troncos escavados, dorme por dias a fio ao relento, em redes ou sobre telhados de choupanas.Agora imagine isso feito por uma mulher, e no ano de 1846. Foi exatamente o que fez a austríaca Ida Laura Pfeiffer (1797-1858) durante sua estadia de dois meses no Brasil. A aventura se passou no interior do atual estado do Rio de Janeiro, e foi apenas um aperitivo de sua primeira viagem ao redor do mundo, que se daria entre maio de 1846 e novembro de 1848. Em cima de uma mula, Ida percorreu o trecho que compreende a foz do rio Saracuruna, na baía de Guanabara, passando por Petrópolis e Nova Friburgo e chegando até o desaguadouro do rio Pomba, junto ao rio Paraíba do Sul, depois de Cantagalo.
Ida narrou suas excursões no interior fluminense em um livro publicado em 1850. Nele, conta as situações dramáticas e assustadoras que teve de enfrentar, como o ataque sofrido por ela e seu acompanhante, o conde Berchthold, de um escravo em busca de vingança pelo castigo que recebera de seu dono poucas horas antes. Ou seus pernoites nas profundezas de fazendas isoladas, nas proximidades de Cantagalo, quando a autora, então acompanhada somente por um escravo que ela mal conhecia, sentiu-se inteiramente vulnerável em seu quarto precariamente protegido.
As circunstâncias, porém, não impediram a intrépida viajante de continuar. Entre 1851 e 1855, a austríaca empreendeu sua segunda volta ao mundo. E, depois dela, ainda uma temerária viagem a Madagascar em 1856, desaconselhada por ninguém menos que o explorador alemão Alexander von Humboldt (1769-1859), a quem conhecera no mesmo ano. Naquela época, a disputa entre Inglaterra e França pelas ilhas Maurício tornava a situação política extremamente perigosa na região. Se Ida sobreviveu a uma malária e a um fracassado golpe de Estado no arquipélago em 20 de junho de 1857, foi graças à ajuda de uma família amiga.O fato é que o medo nunca a impediu de tomar importantes decisões em sua vida. Sua biografia de viajante-escritora, algo absolutamente impensável para uma mulher na primeira metade do século XIX, foi atravessada por episódios difíceis – e não somente por conta de suas andanças. Com a morte do pai, a vida de Ida Reyer – seu nome de solteira – mudou de rumo drasticamente em função da mentalidade conservadora de sua mãe. Embora apaixonada por Joseph Trimmel, professor particular que havia sido contratado pela própria mãe em 1810, a austríaca viu suas pretensões de se casar com ele naufragarem por razões de “adequação social” – inclusive em função do dote de 16 mil gulden que a noiva levaria por testamento ao casamento.Em 1820, após anos de insistência, a jovem Ida acabou cedendo à pressão materna por um casamento no espírito do biedermeier – palavra alemã que designa um modo de vida moral e estético conformista e bem-comportado, próprio de uma época de opressão em quase toda a Europa, e que teve Viena como epicentro. Casou-se naquele ano com Mark Anton Pfeiffer, após ter imposto à mãe uma condição: que o futuro marido fosse um homem de idade. Pedido atendido: Mark Anton era duas vezes mais velho que a esposa. Mas, ironicamente, foi ele quem dilapidou completamente a sua herança, após ter se tornado fiador de um amigo cujo negócio acabou falindo. Depois do nascimento do segundo filho, em 1824, e da morte da mãe, em 1831, Ida teve de começar a trabalhar duro dando aulas de desenho e de música para se sustentar. Em 1833, mudou-se de Lemberg para Viena com os filhos, o que significou, na prática, a separação do marido.O dinheiro não era a única barreira para ela. Em finais do século XVIII e início do XIX, o papel da mulher era claramente restrito pela sociedade. Quando se tratava de viagens, a função feminina era de acompanhante de seu marido. E ponto final. Segundo o autor Franz Posselt, em 1795, a mulher, quando tinha a oportunidade de viajar, deveria fazê-lo “na companhia de seus maridos, pais, protetores, irmãos, tios ou outros parentes”. Essas definições estendem-se, pelo menos, até depois da primeira metade do século XIX, e dão a medida do caráter e da ousadia de Ida Pfeiffer. Separada do marido, mãe de dois filhos, ela dá de ombros para tudo isso e publica seu primeiro relato de viagem ainda na década de 1840.Realizada em 1842 rumo à Palestina, a viagem não chegava a ser escandalosa: o trajeto seguia o modelo tradicional da peregrinação feminina desde tempos medievais, que tinha por alvo Roma, Jerusalém ou Santiago de Compostela. A escolha desse destino inicial certamente não foi à toa. Era uma forma de se proteger da censura que críticos conservadores lançavam sobre a “curiosidade excessiva” de certos viajantes. Crescia o interesse do público leitor por esse gênero literário, e Ida aos poucos construiu certa reputação. Seis anos depois da primeira expedição, já relativamente famosa na imprensa e autoconfiante, Ida revelou em carta suas verdadeiras ambições, ao criticar “pessoas que sempre ficam em casa ou viajam de estradas de ferro ou navios a vapor” porque “pensam que algo assim [o prazer de uma boa cama, ou de uma boa comida] não pode faltar nunca”.Uma vasta rede de subvenções e apoios lhe deu autonomia financeira e recursos suficientes para tornar suas viagens autossustentáveis. Ao longo de sua carreira literária, a viajante interagiu de modo diferenciado com o público leitor. Enquanto a viagem à Palestina foi publicada por insistência de seu editor, Jakob Dirnbök, nas viagens seguintes a austríaca parece ter tomado consciência de sua importância como escritora. As condições envolvidas na produção, na circulação e no consumo de seus relatos revelam elementos daquele cotidiano em sua perspectiva histórica, emprestando-lhes novos significados.É o caso dos escritos de Ida sobre o Brasil. A narrativa de sua passagem por aqui ultrapassa o simples interesse pelo “conteúdo material” da vida cotidiana por ela vivenciada e descrita, ou a “bravura” e o “heroísmo” da autora. Elucida, por exemplo, aspectos da nossa formação identitária, por ter posto em circulação, em várias partes da Europa onde sua obra foi traduzida, estereótipos eurocêntricos acerca do Brasil e de sua gente. “Moralidade e bons costumes no Brasil infelizmente não são coisas muito familiares”, escreveu, “e entre as causas disso uma parte deve estar já na primeira educação das crianças, deixada inteiramente ao encargo dos negros. (...) A sensualidade dos negros é por demais conhecida para que alguém não consiga entender como se dá a corrupção generalizada e precoce dos costumes”. É um discurso comum a relatos de diversos outros europeus que percorreram o Brasil no período, compondo um campo específico de investigação sobre o cotidiano brasileiro no século XIX.“O que de mais forte surge no europeu tornado americano”, ela diz, “é a ânsia pelo dinheiro, que se transforma em paixão e transforma com frequência o mais medroso dos brancos em herói – pois decerto é preciso heroísmo para viver sozinho, como plantador em uma plantação, entre talvez centenas de escravos, distante de toda ajuda, e com a perspectiva de estar irremediavelmente perdido na eventualidade de uma rebelião”.Muitas dessas informações e narrativas, circulando entre os viajantes-escritores europeus e os leitores de seu tempo, na Europa e no Brasil, constituem a identidade que construímos sobre nós mesmos ao longo dos séculos – levando-nos imperceptivelmente a sustentar até os dias de hoje discursos que tiveram sua origem naquele passado. Se para construir sua extraordinária biografia Ida Pfeiffer precisou desafiar os padrões morais da sociedade, nos seus escritos ela reproduziu o olhar europeu de superioridade diante de uma realidade cultural diversa. Até o “heroísmo” está sujeito aos limites do seu tempo.Luiz Barros Montez é professor da UFRJ, organizador de Viagens e deslocamentos. Questões de identidade e representação em textos, documentos e coleções (Móbile, 2012) e autor de “Uma austríaca visita o Rio de Janeiro de 1847. Exame do relato de Ida Pfeiffer sob uma ótica transcultural”, em Revista Patrimônio e Memória, vol. 7, nº 2, Unesp, dez. 2011 (http://pem.assis.unesp.br/index.php/pem/article/view/59).Saiba maisLEITE, Miriam Lifschitz Moreira. Livros de Viagem (1803-1900). Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997.SANTOS, Rafael Chaves. “Construções discursivas do negro em relatos de viajantes alemães no Rio de Janeiro Oitocentista”. Dissertação de Mestrado, UFRJ, 2010.
Olhar feminino, olhar estrangeiro
Luiz Barros Montez