Olho vivo na periferia

Filipe Monteiro

  • Eles já não estão entre nós há algum tempo. Mas Sepé Tiarajú, grande guerreiro guarani do século XVIII, e João Candido, líder da Revolta da Chibata (1910), foram vistos vivinhos da silva nos últimos anos andando pelo subúrbio paulistano. Fantasmas? Que nada. Essas e muitas outras figuras históricas ganharam vida nova na pele dos atores do Teatro Popular União e Olho Vivo (Tuov), um dos mais antigos grupos de rua em atividade no Brasil.

    Fundado no dia 27 de fevereiro de 1966 como “Teatro do Onze”, o Tuov nasceu no Centro Acadêmico XI de Agosto, do curso de Direito do Largo São Francisco, na USP. O grupo era uma espécie de resposta dos estudantes ao regime de exceção instaurado pelos militares em 1964. Liderados por César Vieira (pseudônimo de Idibal Pivetta), a trupe perseguia um objetivo utópico: conscientizar o homem da periferia por meio de uma arte engajada. E, para fazê-lo, nada mais apropriado do que encenar figuras históricas importantes, porém marginalizadas ou menosprezadas pelos livros didáticos.

    Antônio Conselheiro foi o primeiro. “O Evangelho Segundo Zebedeu” (1970), peça de estréia do grupo, levantava a bandeira do sertanejo oprimido e resgatava a mítica comunidade de Canudos. O sucesso de crítica e os prêmios que se seguiram acabaram levando o grupo a festivais na França e na Polônia. O outro lado da fama não tardou: as autoridades passaram a acompanhar os passos da trupe. Em 1973, o Tuov encenava “Rei Momo”, espetáculo sobre a eleição de um monarca pançudo e zombeteiro no Rio de Janeiro imperial. A provocação política resultou na prisão de três integrantes do grupo e na apreensão de todo o material cênico.

    Mas o espetáculo não pode parar. Em 1978, já em meio à abertura política, “Bumba, Meu Queixada” levou até os pátios das fábricas do ABC paulista a história das greves operárias de Perus e Contagem. Alguns sindicalistas gostaram tanto que se tornaram presença garantida em várias apresentações. Um deles foi o então líder do Sindicato dos Metalúrgicos, Luiz Inácio Lula da Silva. Segundo César, que depois atuaria como advogado de Lula, ele “assistiu à peça pelo menos umas 30 vezes”.

    Com o fim da ditadura, a trupe engrenou uma série de espetáculos dedicados a personagens e temas históricos, de Adoniran Barbosa e a trajetória da MPB (“Barbosinha Futebó Crubi”, “Uma Estória de Adonirans”, 1991) a episódios menos conhecidos, como a tentativa de invasão de Ilhéus (Bahia), no começo do século XX, pelo ex-marujo Sebastião Magali (“Us Juãos e us Magalis”, 1996). César diz que a fórmula é simples, mas criativa: “Usamos drama circense e literatura de cordel, com temas regionais, tragédias, musicais e comédias, para atrair uma população que normalmente não consome teatro”.

    Para sobreviver, bolaram uma técnica “Robin Hood”: oferecem trabalho a prefeituras, clubes e empresas, e usam o dinheiro arrecadado para a montagem de espetáculos gratuitos na periferia: “Toma daqui e aplica lá”, resume o fundador do Tuov.

    Atualmente, o grupo reencena a peça “João Candido do Brasil – A Revolta da Chibata” em sua sede, na Rua Newton Prado, no bairro de Bom Retiro, periferia de São Paulo. A entrada, claro, é franca.