“A todos é lícito associarem-se e reunirem-se livremente e sem armas, não podendo intervir a polícia senão para manter a ordem pública”. Assim determinava nossa primeira Constituição republicana, em 1891. E assim se fez.
A criação de associações e entidades de grupo era prática comum no país. No Rio de Janeiro – capital da diversidade social, com intensa atividade de comércio e sede da burocracia do Estado –, essas iniciativas eram numerosas e variadas, funcionando como verdadeiras “redes de proteção social”, um ideal que vigora até hoje. O espírito das atuais ONGs não difere muito do que ocorria há cem anos.
Culturais, recreativas, religiosas, políticas, educativas, beneficentes, sindicais ou de auxílio mútuo, as sociedades registradas junto ao poder público chegaram a 682 entre 1903 e 1916. A maioria era dedicada ao “auxílio mútuo”. Isso se explica pelas condições de vida a que estava submetida a maior parte da população do Distrito Federal, com seu grande número de migrantes – brasileiros e estrangeiros – sem famílias que os amparassem. Submetiam-se a duríssimas condições de trabalho, com longas jornadas, baixos salários, sem direito a férias nem repouso remunerado, e quase nenhum tipo de assistência social pública. O modelo associativo, já seguido por trabalhadores em outros países, foi adotado como solução para problemas concretos de assistência médica, impossibilidade de trabalho ou pensões à família.
A lista de benefícios prestados compreendia auxílios para funeral (do associado ou de seus familiares), contribuições para o luto da família (incluindo gastos com roupas, principalmente para as mulheres), pensões por acidentes, doença ou velhice, fornecimento de remédios, auxílios para tratamento fora do Rio de Janeiro ou repatriação em caso de doença. Várias entidades prestavam ainda serviço advocatício, auxiliavam presos não sentenciados, faziam pequenos empréstimos e atuavam como fiadoras de sócios para exercício de cargos ou aluguel de residências.
Mais do que amenizar dificuldades materiais, as associações assumiam, para muitos membros, um papel quase familiar. Resgatavam a importância de pessoas que, por solidão ou uma vida anônima de trabalho, não tinham quem lhes chorasse a morte ou rezasse por suas almas. Várias agremiações, como a Loja Maçônica Instrução Escocesa, a Caixa Beneficente Amparo das Famílias e a Associação Beneficente Protetora do Lar, acompanhavam o funeral, cobriam o caixão com seu pavilhão social e mandavam celebrar missas pelas almas. A União e Progresso Protetora dos Cabo-Verdianos chegou a publicar anúncios fúnebres, uma distinção que, até hoje, só pessoas de mais recursos podem ter.
Mulheres não costumavam ser aceitas como sócias. Quando o faziam, era sob o patrocínio dos pais ou maridos, sem direito de voto ou de participação na administração. Mas houve honrosas exceções, como as sociedades espíritas, o Partido Republicano Feminino e a primeira organização dedicada à categoria das prostitutas: a Associação Beneficente Funerária e Religiosa Israelita, fundada em 1909 para ajudar as “polacas” (prostitutas de origem judaica) e seus familiares. Durante algum tempo, essa organização foi integralmente dirigida por mulheres.
Em outros aspectos, o associativismo carioca foi bastante inovador. Numa época em que a Constituição brasileira negava o direito de voto aos analfabetos, a grande maioria das sociedades o reconhecia, só não permitindo sua participação nas administrações. Da mesma maneira, várias associações reconheciam às companheiras não oficiais o direito à pensão por morte dos sócios. Embora esse tipo de união não fosse socialmente aceito e os filhos gerados fora do matrimônio não pudessem ser reconhecidos, o Centro Beneficente dos Monarquistas Portugueses afirmava que, se o associado fosse casado na Europa, seu legado seria dividido igualmente entre a esposa e a companheira brasileira. Se apenas uma delas tivesse filhos, esta ficaria com dois terços do valor total.
O cadastramento no Registro Especial de Títulos e Documentos do Rio de Janeiro, criado em 1903, não era obrigatório, embora facilitasse as transações comerciais, como comprar e vender bens, ter conta em banco, e significasse a própria existência jurídica da instituição. Além das 682 associações registradas oficialmente naquele período, pelo menos outras mil preferiram recorrer à Polícia, pedindo autorização para realizar suas atividades. Eram clubes desportivos, sociedades dançantes, grupos carnavalescos e pastoris, normalmente com poucos recursos e sem patrimônio, que pretendiam apenas promover festas ou realizar “passeatas” (saídas à rua) sem sofrer repressão policial. O Clube Dançante Familiar Anjos da Meia-Noite, por exemplo, impedido de funcionar em dezembro de 1909, decidiu se legalizar, “pois assim nada tinha a polícia com o fim do clube, desde que este procedesse na forma legítima e moral”.
Algumas organizações proibiam qualquer discussão política ou aproximação com o Estado, mas a maioria costumava assumir a defesa pública de seus associados, solicitando medidas e fazendo propostas. Dispunham-se a colaborar ou a aceitar a colaboração do governo para a solução de problemas sociais. Legítimas representantes de um grupo ou categoria profissional, estimulavam seus membros a tirar título de eleitor (que na época era facultativo) e a reclamar medidas como a limitação da jornada de trabalho, a regulamentação das condições profissionais e maiores salários. Ganhou repercussão, por exemplo, a luta das associações de comerciários em favor da não abertura das lojas nos fins de semana. A Associação dos Empregados no Comércio do Rio de Janeiro, a mais antiga, fundada em 1881, tinha no início essa preocupação. A União dos Empregados no Comércio também foi muito importante nessa luta, juntamente com outras entidades. A lei do fechamento das portas entrou em vigor em janeiro de 1912.
Outra maneira de tentar ganhar poder de barganha junto ao Estado era convidar autoridades para ocupar cargos honoríficos. Enquanto a Associação Beneficente do Corpo de Oficiais Inferiores da Armada elegeu como patrono o próprio ministro da Marinha, a Associação Protetora dos Homens do Mar foi além: concedeu título de presidente honorário ao presidente da República, ao ministro da Marinha e ao presidente do Clube Naval. Fruto ou não dessa bajulação, o fato é que a entidade obteve do governo, em 1905, direito de usufruto por 30 anos do Posto Cristiano Otoni, na Ilha de Boa Viagem.
Várias instituições garantiam título honorário a seus membros ilustres. Afinal, mesmo depois de abandonar seus cargos públicos, aquelas autoridades exerciam influência no Estado e na sociedade, o que podia ser útil. Na prática, as associações pretendiam usar todos os canais possíveis para, no jogo político, alcançar seus objetivos, deixando abertas todas as possibilidades táticas.
Também precisavam ter visibilidade junto à sociedade em geral. Para isso, dois recursos eram importantes: no espaço público, suas sedes; no espaço privado, os diplomas. Em geral localizadas na área central da cidade (região nobre para finanças, o comércio e a política), as sedes funcionavam no andar superior e alugavam lojas no térreo para gerar renda. Contavam quase sempre com balcões – uma metáfora do desejo de falar à sociedade em geral – e exibiam dísticos, estátuas e outros símbolos associados a suas características. As portuguesas, por exemplo, além de recorrerem a grandes obras de cantaria e serralheria, tinham ameias, ornamentos manuelinos e traços que lembravam os castelos medievais do interior português.
Os diplomas – com seus símbolos, beleza e refinamento gráfico – eram exibidos nas paredes das casas ou dos escritórios, conferindo evidente distinção aos associados, como a dizer: pertenço a um grupo que me dá força e identidade. Algumas imagens eram bastante recorrentes, como o símbolo das mãos unidas, uma metáfora da ideia de associação, e o desenho da Baía da Guanabara, que evocava não só a sede das sociedades, mas também a ideia de abraço, acolhimento, inclusão. As representações de virtudes, da ciência e das artes, além de máquinas ou ferramentas ligadas a uma determinada atividade profissional, também apareciam com frequência como símbolos comuns.O número e a diversidade de associações, seus diferentes públicos-alvo e suas finalidades indicam que elas eram um meio eficaz para a população buscar e ampliar seus direitos. Constituíam, ao mesmo tempo, um espaço democrático, regido por normas estabelecidas pelo grupo, e uma escola de democracia, na medida em que educavam seus membros no debate, estimulavam sua participação e conscientizavam-nos de que o êxito ou o fracasso do grupo eram responsabilidade de todos.
A força do movimento associativo no Rio de Janeiro do início do século XX contraria a ideia do brasileiro como povo “insolidário” – já naquele tempo usada como argumento para “o nosso atraso” por pensadores respeitados como Oliveira Viana (1883-1951). Há tempos acreditamos na união como forma de luta para a construção de uma sociedade melhor.
Vitor Manoel Marques da Fonseca é técnico do Arquivo Nacional e autor do livro No gozo dos direitos civis: associativismo no Rio de Janeiro, 1903-1916. (Rio de Janeiro/Niterói: Arquivo Nacional/Muiraquitã, 2008).
Saiba Mais - Bibliografia:
KUSHNIR, Beatriz. Baile de máscaras: mulheres judias e prostituição – as polacas e suas associações de ajuda mútua. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
BATALHA, Cláudio H. M. (org.). Dicionário do movimento operário: Rio de Janeiro do século XIX aos anos 1920, militantes e organizações. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009.
ZOLA, Émile. Germinal. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
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Vitor Manoel Marques da Fonseca