Cólicas nefríticas, febres, dores de ventre e de estômago. E ainda: surdez, acidentes uterinos, tosses e envenenamentos. Tem um pouco de tudo. E atrás vem quase toda a sociedade portuguesa da época: nobres e populares, artesãos e comerciantes, damas da corte e camponesas, funcionários públicos, religiosos, escravos. Cada um com seu pedido de socorro diante do mal.
De tudo isso estão repletas as páginas das Observações Médicas Doutrinaes de cem casos gravíssimos, do médico português João Curvo Semedo (1635-1719). O livro, cuja primeira edição, impressa em Lisboa em 1707, se encontra na Divisão de Obras Raras da Biblioteca Nacional, apresenta para o leitor uma interessante seleção de casos médicos, observados pelo autor durante os muitos anos de exercício da profissão.
Escrita também em português (além do latim) para poder chegar a um público mais numeroso, com um estilo agradável e com bastante humor, a obra registra as ocorrências mais variadas. Temos o caso de “febre e suor continuo com tosse e estilicídio”, que atormentava Dona Cecília Maria de Menezes, e o da “dor de pedra que por ocasião de um repentino e excessivo desgosto se arrancou do lugar em que estava e para sahir da bexiga atormentou com tanto excesso a hum religioso que o chegou às portas da morte”. E ainda podemos ler sobre a mulher que sofria de uma “pontada no lado esquerdo no tempo da conjunção mensal” e conhecer a história do “menino que metendo boca num feijão lhe entrou pela áspera artéria e o afogou rapidamente”.
Também é curiosa a mistura de doenças físicas com situações em que se torna necessária uma intervenção espiritual, como é o caso dos “doentes enfeitiçados e ligados por arte diabólica de tal sorte que uns ficavam incapazes de coabitar com suas mulheres e outros as aborreceram de forma que nem podiam vê-las, nem estar em sua companhia”. A ação do médico é tão eficaz que resolve estes e outros problemas conjugais, para felicidade geral.
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Mas quem era esse doutor João Curvo Semedo, ao qual todas as classes sociais recorriam com tanta freqüência? Exerceu a medicina em Lisboa, onde foi médico da Casa Real e Familiar do Santo Oficio: com os ombros protegidos por estas duas poderosíssimas instituições, pôde se dedicar à profissão com tranqüilidade. Criou uma verdadeira dinastia: o sobrinho Pedro Joaquim escreveu o Elixir do Universo e outro descendente, Manuel José, publicou a segunda edição das Observações e editou o Compêndio dos Remédios Curvianos.
Ele foi, sem dúvida, um médico capaz e estimado. No entanto, sua imensa fama na época decorreu principalmente da invenção e da preparação de remédios. Muitos colegas o acusaram de ter feito muito dinheiro com a venda destes medicamentos, cuja elaboração ficava totalmente coberta pelo segredo, que passava de geração em geração. De fato, João Curvo Semedo dedicava boa parte de seu tempo a fabricar remédios, ou “mezinhas, que, por serem muy singulares, reservei a manufactura delles para mim enquanto for vivo, e para deixar a meus herdeiros depois de morto”, como escreveu num manifesto aos amantes da saúde, na abertura das Observações. Aqui ele responde às críticas de quem discutia a validade de seus preparados apresentando suas virtudes e propriedades.
Do “Benzoartico Cordial” aos “trociscos de Fioravanto”, dos “castelinhos de estancar sangue” ao “lenimento contra as almorreymas” (hemorróidas), sem esquecer as “pílulas absorventes antiácidas e antifebriles” ou a “massa contra as lombrigas.”
Entre todas as virtudes dos medicamentos curvianos, talvez a maior fosse exatamente a de encher os bolsos do seu inventor e fabricante. Curiosamente, quando, já com 80 anos, lhe perguntaram como conseguira chegar a essa idade, respondeu com humor amargo, mas verdadeiro: “Vendendo as mezinhas, mas nunca tomando-as.”
(Por Marcello Scarrone)
Operação Sanguessuga
Marcello Scarrone