Operários em construção

Paulo Cruz Terra

  • A Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) completou 70 anos em 2013. Mas, para serem inteiramente justas, as comemorações pelos direitos trabalhistas no país deveriam recuar mais algumas décadas, de volta à Primeira República (1889-1930). Naquele período se deram lutas cruciais dos trabalhadores, que ampliaram o acesso à cidadania de uma grande parte da população brasileira.

    Embora fruto de um golpe militar, a Proclamação da República em 1889 foi recebida com entusiasmo por muitos militantes operários, sobretudo pela abolição do critério censitário – o limite à participação em eleições com base na renda. Os trabalhadores vislumbraram o direito de votar e serem votados como uma possibilidade de fazer com que a legislação se tornasse uma emanação do povo, “e não de algumas classes privilegiadas, como foram todas as leis do império”, nas palavras do jornal operário A Voz do Povo, de 6 de janeiro de 1890.

    A eleição para a Constituinte, em 1890, mobilizou um grande número de militantes no Rio de Janeiro. Eles criaram três organizações partidárias e todas indicaram candidatos. A votação dos representantes dos trabalhadores, no entanto, foi pequena. O único eleito foi o tenente José Augusto Vinhaes, que também havia sido indicado pela chapa oficial do Partido Republicano da Capital Federal. Apesar do insucesso eleitoral, outros partidos operários, de matriz socialista, foram organizados ao longo das primeiras décadas da República, sempre elegendo pouquíssimos membros.

    A criação do Partido Comunista do Brasil (PCB), em 1922, abriu uma nova corrente ideológica no movimento operário, ao diferenciar-se tanto do socialismo quanto do anarquismo. Influenciado pela Revolução Russa de 1917, o PCB propunha que as contradições do capitalismo só seriam superadas pela revolução proletária, ao mesmo tempo em que acreditava que a participação nas eleições seria uma importante forma de propaganda.

    Desiludidos com as urnas, porém, os trabalhadores passaram a privilegiar outras estratégias. Associações denominadas na época como “resistências”, “ligas” e “centros” assumiam funções sindicais, como lutar pela diminuição da jornada, por melhores salários e por condições mais dignas de trabalho. Em seu texto de apresentação, a Associação de Resistência dos Cocheiros, Carroceiros e Classes Anexas, criada no Rio de Janeiro em dezembro de 1906, argumentava que esses trabalhadores não tinham “descanso, nem horas de ocupação perfeitamente limitadas”. Cocheiros e carroceiros trabalhavam de 12 a 14 horas por dia. Diversas outras ocupações atingiam 14 horas no Rio de Janeiro e até 16 horas diárias em São Paulo.

    Os sindicatos tinham diferenças consideráveis entre si. Os chamados reformistas procuravam transformar as reivindicações profissionais em leis, utilizavam a greve apenas em último caso e buscavam intermediários, como os chefes de Polícia e os prefeitos, para solucionar conflitos sociais. Já os sindicalistas revolucionários, ligados aos anarquistas, repreendiam a utilização de intermediários para dirimir contendas entre empregados e patrões e defendiam a revolução, com o rompimento das relações de dominação capitalista. A greve geral era sua estratégia crucial.

    Também eram importantes, no período, as associações mutualistas. Não eram organizações exclusivas dos trabalhadores, mas grupos de pessoas que contribuíam para um fundo comum voltado a ajudar membros que necessitassem. Assim atendiam a determinados direitos sociais negligenciados pelo Estado. A Sociedade União Beneficente e Protetora dos Cocheiros, por exemplo, oferecia, segundo o estatuto de 1906, quatro tipos de socorros: “contribuições feitas em caso de enfermidade”, “pensão em caso de invalidez ou na prestação para retirar-se para fora da Capital Federal, por moléstia”, auxílio de um advogado para defesa dos direitos dos sócios e socorro para a realização de funeral.

    As greves já eram praticadas ao longo do Império – no período ocorreram 13 delas no Rio de Janeiro, inclusive por escravos – mas ganharam uma expressão muito maior na Primeira República. Entre 1890 e 1891, ocorreram 14 greves no Rio de Janeiro e, em 1903, elas chegaram a 39, uma delas a primeira greve geral do país. Na década seguinte, o período de 1917 a 1920 concentrou 90 paralisações. No estado de São Paulo, estima-se em 116 o número de greves entre 1915 e 1929.

    Na greve geral de São Paulo em 1917, uma das mais importantes do período, cerca de 44 mil trabalhadores cruzaram os braços. A paralisação de uma só categoria podia ser suficiente para provocar grandes consequências. Em janeiro de 1900, por exemplo, a greve dos trabalhadores do transporte da Capital Federal afetou diretamente a circulação de pessoas e mercadorias, dos produtos para a Alfândega até o pão, e recebeu fortíssima repressão da Polícia e do Exército. Aliás, em todo o Brasil a violência policial foi uma constante na reação às manifestações.

    Grande parte das greves na Primeira República tinha como principal motivo a questão salarial. Outras demandas variavam de acordo com a categoria, como os cocheiros e carroceiros que, em 1890, se mobilizaram contra artigos do Código Penal que previam punição para acidentes ocorridos no trabalho. Alguns órgãos da imprensa tentavam desqualificar os manifestantes, afirmando que eles não compreendiam o tema em questão ou que haviam sido manipulados. O Jornal do Commercio considerou as reivindicações de cocheiros e carroceiros malevolamente inventadas “por especuladores miseráveis, que vivem da simplicidade dos trabalhadores”, causando séria impressão no espírito “dócil dos pobres cocheiros”. A Gazeta de Notícias, ao comentar a paralisação de cocheiros e condutores da Companhia Carris Urbanos, em 1898, fez pouco caso: “Quando se fala em greve no Brasil, a gente não se assusta, porque entre nós uma greve, por mais grave que seja, nunca assume as proporções de verdadeira revolta, como no Velho Mundo”.

    A Justiça exclusiva para questões de trabalho passaria a funcionar somente em 1941. Antes disso os trabalhadores recorriam a outras esferas judiciárias para tentar garantir e alargar os seus direitos. Em 1918, o Centro de Carregadores em Carrinho de Mãos abriu processo no Supremo Tribunal Federal (STF) contra o chefe de Polícia e o prefeito do Distrito Federal, para garantir a liberdade de exercício da profissão, ameaçada por constantes multas e apreensões de veículos.

    Geralmente se atribui ao militante a imagem de homem branco, imigrante, de origem italiana ou espanhola, ligado ao anarquismo. Estudos recentes demonstram que mulheres também tinham suas bandeiras específicas, como a denúncia de abusos sexuais no trabalho. Havia anarquistas, mas também outras vertentes políticas. É inegável a importância dos estrangeiros, de diferentes países, porém a maioria vinha de áreas rurais, não tendo experiência anterior com a indústria ou os sindicatos. A eles se juntaram muitos trabalhadores nacionais, incluindo os negros, cuja participação no movimento operário esteve apagada até pouco tempo na historiografia nacional.

    As formas de luta dos trabalhadores ajudam a entender por que, mesmo estando distantes da política oficial (enquanto eleitores e eleitos para cargos políticos), eles conseguiram que o Estado garantisse alguns direitos ainda na Primeira República. A pressão que exerceram e sua demonstração simbólica de força aliaram-se a fatores externos – como o Tratado de Versalhes (1919), que recomendou a instituição do direito do trabalho – e foram primordiais na criação de leis, como a que se referia aos acidentes de trabalho (1919) e a que regulamentava as férias (1925).

    Quando Getulio Vargas decretou a CLT, em 1943, o caminho já estava pavimentado.

     

    Paulo Cruz Terra é professor da Universidade Federal Fluminense e autor de Cidadania e trabalho: cocheiros e carroceiros no Rio de Janeiro (1870-1906), (Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2013).

     

    Atualidade em greve

     

    O historiador Marcelo Badaró Mattos afirmou que as greves foram justamente “a principal forma de intervenção da classe trabalhadora na política brasileira, ao longo do século XX”. O ano de 1989 foi o ápice, com cerca de 2 mil em todo o país. Embora este número tenha caído ao longo tempo, é possível perceber uma retomada. Em 2012, por exemplo, foi registrado o maior número de paralisações em 16 anos: 873 ocorrências, representando um aumento de 58% em relação ao ano anterior.

    Ainda não temos os números para 2013, mas neste ano foi possível verificar greves de grande impacto, como a dos bancários, a maior em nove anos, e as dos trabalhadores das construções de estádios para a Copa. A paralisação de professores da rede municipal e estadual do Rio de Janeiro, por sua vez, tem relações com a série de protestos que assolaram o país neste ano e que ficaram conhecidas como “Jornada de junho”. As manifestações dos professores foram duramente reprimidas pela polícia, que recrudesceu a força após as mobilizações de junho. Ao mesmo tempo, as mobilizações dos professores passaram a congregar um grande número de pessoas, não só de profissionais da categoria, mas também de pessoas que rejeitavam o desmedido uso da força policial ou que simplesmente apoiavam a causa.

     

    Saiba mais - Bibliografia

     

    BATALHA, Claudio H. M. O movimento operário na Primeira República. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

    GOMES, Ângela de Castro. Cidadania e direitos do trabalho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

    HALL, Michael. "Entre a etnicidade e a classe em São Paulo". In: CARNEIRO, Maria L. T.; CROCI, Frederico & FRANZINA, Emilio (orgs.). História do trabalho e histórias da imigração. Trabalhadores italianos e sindicatos no Brasil (séculos XIX e XX). São Paulo: Edusp, 2010.

    MATTOS, Marcelo Badaró. Escravizados e livres: experiências comuns na formação da classe trabalhadora carioca. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2008.

    RIBEIRO, Gladys Sabina. “Cidadania e luta por direitos na Primeira República: analisando processos da Justiça Federal e do Supremo Tribunal Federal”.Tempo, vol. 13, n. 26, 2009.