Oposição e mulher pelada

Bruno Brasil

  • Quem passasse pelas bancas de jornal cariocas em fevereiro de 1978 certamente levaria um susto. Lá estava o presidente Ernesto Geisel (1907-1996) na capa do tabloide Repórter dizendo: “É preciso eleições diretas”. Na frente da avantajada testa do general, uma frase resumia tudo: “Ele abriu o jogo”. A abertura política do fim da ditadura militar, “lenta, gradual e segura”, estaria se acelerando?

    Pura ilusão. O senhor de óculos escuros e cara de linha-dura era um sósia de Geisel. Só as suas opiniões diferiam das do presidente. A brincadeira para atrair a atenção dos leitores era mais uma irreverência do Repórter, jornal alternativo que juntava o humor e as “mazelas do povão” à resistência ao regime militar. Atualmente, exemplares da publicação se encontram na Divisão de Publicações Seriadas da Biblioteca Nacional.

    Lançado no Rio em novembro de 1977, Repórter já surgiu fazendo barulho. Na primeira edição, publicou uma entrevista inédita e exclusiva com o presidente da Anistia Internacional, Thomas Hammarberg, feita durante sua passagem clandestina pelo Brasil. O trio de jornalistas que fez a entrevista – Luiz Alberto Bettencourt, João Sant’Anna e Paulo Haddad – não tinha onde publicá-la e criou Repórter, um jornal de mil exemplares vendido nas bancas do Rio. Logo o tabloide se tornou popular, com tiragens maiores e circulação nacional. Muitas vezes o jornal foi custeado pelos seus editores. Segundo o ex-secretário de redação do tabloide, Toninho Vaz, só um ou outro recebia salário.

    O sucesso se devia, em parte, aos ataques à ditadura. Mesmo com a repressão ainda sobre a imprensa, Repórter não perdia o ânimo. Acabou colecionando processos e apreensões. Em abril de 1978, a Polícia Federal recolhereu o nº5 das bancas por conta das manchetes “Censura é uma loucura” e “Todo mundo contra o arrocho (salarial)”. O episódio foi registrado no nº8: “Mais de 47 mil exemplares empilhados na cela fria, (...) o jornal é vítima de inquérito na mesma Polícia Federal, o que retarda toda ação em seu benefício na justiça. Combalido, Repórter sofreu fichamento e interrogatório (...). O velho número 5 (...) é a prova viva de que todo esse papo de liberalização ainda não chegou na calçada”.

    Em fevereiro de 1979, uma nova brincadeira rendeu novo processo – uma fotomontagem trazia o presidente da República, general Figueiredo (1918-1999), travestido de rainha na capa. O jornal sofreu com a onda de explosões em bancas, promovida pela ditadura contra quem vendesse publicações “subversivas”. Diante dos contratempos, um desabafo saía no nº14: “não somos saco de porrada. Aliás, virou mania acusar os jornais pequenos de tudo quanto é coisa. (...) Fomos nós, Repórter, que denunciamos a verdade sobre o atentado ao jornal O Estado de São Paulo, em 68”. Segundo Toninho Vaz, havia “a pretensão de se fazer um jornal popular, que pudesse levar a discussão da abertura até o povão. Depois a linha editorial sofreu uma drástica mudança, também no sentido apelativo”.

    Repórter oferecia uma mistura de sensacionalismo, sexo e engajamento político que deu certo. Na mesma edição em que Figueiredo aparece como “rainha”, sete páginas tratam de “um assunto proibido”, o lesbianismo. Títulos espirituosos, como “Mulher com mulher não dá jacaré” e “Favelada tá doida pra experimentar”, intercalam fotos de garotas nuas em pleno, digamos, afeto. Artigos sobre a marginalização homossexual, abordada em diferentes contextos, incluíam depoimentos francos e picantes: “Tem também a cateça, que é o lance das mulheres se unirem, uma com a perna por dentro da outra, só que a fancha fica...”. Melhor parar por aqui.

    A exploração da violência, do futebol e do erotismo ajudava a desviar a atenção do caráter de denúncia do jornal. Matérias como “A culpa da inflação é do governo” ou “Botou charuto aceso no ânus da atriz” dividiam espaço. Antes de um texto do jornalista e crítico literário Otto Maria Carpeaux (1900-1978), o leitor arregalava os olhos para fotos de carnaval mais do que assanhadas. Por vezes, o popularesco e o politizado se juntavam num título: “Zico é bom de bola, de cama e quer votar”.

    Em 1980, a tiragem de Repórter caiu de 70 mil para 35 mil exemplares, muito por conta das apreensões e dos atentados a bomba contra as bancas. Em crise, o jornal apelou para edições mais eróticas a fim de se manter, como as especiais de carnaval. Falido em dezembro de 1981, ainda foi lançada, com esforço, uma edição final em 1982.

    Após trinta anos de sua extinção, fica uma pergunta: haveria hoje uma publicação parecida com o Repórter? Para Toninho Vaz,  Repórter não inspirou novos jornais. O sósia de Geisel, afinal, deixou saudades.