Não é preciso ir muito longe para desvendar mistérios do Oriente Médio. A Biblioteca Nacional guarda um acervo de mais de dois mil itens relacionados àquela região, numa variedade de origens, temas e épocas capaz de surpreender o mais exigente pesquisador ou saciar o mais curioso dos curiosos.
O material está disperso por todas as divisões da Biblioteca, proveniente de coleções, doações e depósitos. Centenas de fotografias do século XIX mostram províncias do Império Otomano, como Líbano, Palestina e Egito. Uma delas, feita pelo estúdio de Hyppolite Delie e Emile Bechard no Cairo, retrata D. Pedro II, a imperatriz Teresa Cristina e comitiva em frente às pirâmides. O curioso é que há 91 cópias desta imagem na Divisão de Iconografia. Uma possível explicação para essa quantidade é o fato de também figurarem nessa foto Auguste Mariette e Heinrich Brugsch, famosos egiptólogos da época, e o gosto do imperador de estar entre intelectuais renomados. Recortes do periódico O Paiz de 1925, assinados por Nicolau Debane, dão conta do início das relações formais do Brasil com o Império Otomano, por meio da assinatura de um Tratado de Amizade, Comércio e Navegação em 1858 e da instalação de um consulado brasileiro em Alexandria na mesma época.Guardados no cofre da Divisão de Manuscritos, há dezoito textos orientais – um em persa, outro aparentemente em siríaco, dezesseis em árabe dialetal e clássico. Oriundos de fontes variadas, são, na maioria, estudos de gramática árabe, religião islâmica e textos cristãos, embora conste também um ofício do sultão do Marrocos endereçado a D. João VI, do final do século XVIII.
Seis desses manuscritos ligados ao islamismo foram doados à Biblioteca Nacional em 1948 pelo filólogo húngaro Paulo Rónai. Segundo uma de suas filhas, a jornalista Cora Rónai, estes documentos devem ter vindo da Turquia, adquiridos por Gyorgy, irmão de Paulo. Gyorgy, engenheiro que se refugiou do nazismo em Istambul, teria levado os escritos para o irmão filólogo decifrar, sendo esta uma espécie de tradição na família. Como Gyorgy faleceu logo após a Segunda Guerra Mundial, Paulo teria optado pela doação à Biblioteca Nacional, por não querer permanecer com um material que trouxesse dolorosas lembranças de seu único irmão. Os textos foram elaborados nos séculos XVII e XVIII. Tratam de gramática, com referências à religião muçulmana, ou são simples manuais devocionais.
Quase todos os manuscritos cristãos também são obras puramente religiosas. O mais antigo deles data de 1496. Chama a atenção o códice Horas diurnas e nocturnas, que teria sido escrito em Paris no ano de 1631. Ele pertencia à Real Biblioteca de Lisboa, e veio para o Brasil com D. João, em 1808. Ricamente encadernada, o texto de abertura da obra diz: “Esse é um livro de orações para todo o dia no rito maronita siríaco publicado com a autorização do Papa Gregório XIII”. O autor seria o diácono Abdullah, filho de Gerges Al-Misbari, da cidade de Damasco. Apesar de datar dos primeiros séculos da era cristã, a Igreja Maronita manteve-se afastada do Ocidente, criando liturgia própria e usando o aramaico como idioma de seus rituais. Em 1099, quando os cruzados chegaram à região do Líbano, os maronitas passaram a aceitar a autoridade papal. Durante muito tempo, os franciscanos sediados na Terra Santa faziam o contato com a Santa Sé, até que em 1584 passaram a funcionar em Roma um Colégio Maronita e uma Gráfica Oriental, dedicada a imprimir livros com tipos árabes. O códice data do período imediatamente posterior à inauguração da escola romana, quando alunos se dedicavam a produzir e disseminar hinos e catecismos, além de livros de gramática árabe e siríaca. No início do século XVII, também a Santa Sé estimulava comunidades religiosas católicas da França a enviar missionários para o Líbano e para a Síria. Talvez isso explique por que o códice foi escrito em Paris.
O raro exemplar demonstra que ainda hoje há mais especulações do que certezas sobre muitos documentos relativos ao mundo árabe e muçulmano sob guarda da Biblioteca Nacional. Eles clamam urgentemente por pesquisas.
(Monique Sochaczewski é professora da Fundação Getulio Vargas no Rio de Janeiro e foi bolsista de pesquisa na Biblioteca Nacional em 2007).
Oriente Médio por inteiro
Monique Sochaczewski