Origens reveladas

Álvaro Pereira do Nascimento

  • João Cândido escoltado nos dias posteriores à revolta. Nos anos seguintes, prisões e interrogatórios marcarão sua vida.Até 22 de novembro de 1910, João Cândido Felisberto era mais um marinheiro da Armada Nacional. Visitou cidades pelo mundo, aventurou-se em mares bravios e viveu intensamente a vida de marujo. Nascido em 1880, foi enviado para o Rio de Janeiro seis anos após a queda do Império, e sacudiu a República na semana em que o novo presidente tomou posse. Mas naquela noite de novembro, João Cândido foi alçado a líder de um movimento que ficou na História como a Revolta da Chibata, e que pleiteava melhores condições de trabalho na Armada. Daí em diante, seu nome passou a frequentar as principais páginas de jornais e revistas no Brasil e no exterior.

    Ofensiva tão espetacular merecia, de fato, uma grande repercussão. Cândido e seus companheiros chegaram a tomar os navios de guerra que haviam sido comprados pela Marinha naquele ano, e, com os canhões apontados para a capital federal, ameaçaram bombardear caso o governo não fizesse o que eles exigiam. Foram quatro dias de medo e sobressaltos a cada barulho entreouvido pelos moradores da cidade. Embora não tivessem atingido totalmente seus objetivos, eles obtiveram apoio político e resolveram negociar. O Congresso prometeu mudanças e concedeu anistia aos amotinados – os marinheiros aceitaram.

    Dias depois, vieram as represálias. A maioria dos revoltosos acabou sendo presa quando explodiu uma segunda revolta, patrocinada por marinheiros e fuzileiros da Ilha das Cobras, em dezembro daquele mesmo ano. Começou aí a perseguição a João Cândido e a centenas de seus companheiros, que acabaram sendo presos, torturados ou mortos por fuzilamento ou asfixia.  

    Durante o interrogatório que apurou quem foram os culpados pela segunda revolta, Cândido disse que era argentino. Naquele dia 12 de junho de 1911, perguntaram a ele “qual seu nome, naturalidade, idade, filiação [...]? Respondeu se chamar João Cândido, nasceu na província de Corrientes, na República Argentina”. Já no interrogatório de 18 de novembro de 1912, com a presença de advogados de defesa, ele mudou sua versão e disse ter nascido no “estado do Rio Grande do Sul...”. Valia tudo para tentar ludibriar um tribunal militar que só tinha em mente condená-lo, e não julgá-lo. Por muito pouco, um oficial vingativo não o matou por asfixia. Temendo pela vida e sozinho em sua defesa, João talvez tenha pensado, naquele primeiro interrogatório, que a melhor saída fosse a deportação, daí ter alegado ser cidadão argentino. A estratégia acabou não dando certo, e ele ficou na cadeia até o fim do processo.

    Mas em que ambiente João Cândido teria sido, de fato, gerado? Explicar os primeiros momentos da vida desse filho de escravos é narrar a história do povo negro após a Abolição. Os registros dão conta de que ele nasceu no Rio Grande do Sul, na Fazenda Coxilha Bonita, que ficava no então município de Rio Pardo – hoje, Dom Feliciano. A propriedade pertencia a Gaspar Simões Pires, que também era dono de terras extensas, milhares de cabeças de gado e outros animais de criação, como cavalos, ovelhas e éguas. Isso sem contar suas nove escravas e doze escravos. Uma delas era Ignácia, futura mãe de João.

    Com a morte de Gaspar, em 1863, seus herdeiros naturais acabaram dividindo a herança. Um deles, sua filha Maria do Carmo Simões Pires, ficou com um escravo e duas escravas: Narciso, Caetana e a própria Ignácia. Em 1876, a morte da viúva de Gaspar, D. Florinda Cândida de Lima, traz à luz um testamento que concede duas alforrias, uma delas ao pai de João Cândido, de acordo com o que ela declarou ao tabelião: “deixo libertos por meu falecimento os meus escravos José Thomé e João Felisberto, no valor de 50$000 réis cada um”.

    Pelo valor baixo estipulado, ambos podiam ter problemas de saúde ou estar com idade avançada. Mas como João Felisberto também era chamado de “João Cândido Velho” ou “João Cândido Felisberto Velho”, supõe-se que o sobrenome tenha surgido da forma como era chamado – “João, o velho”. Após a alforria, João Felisberto permaneceu trabalhando para a família na Fazenda Coxilha Bonita. Sua função era cuidar de milhares de cabeças de gado e transportá-las para os compradores. Como as terras dos filhos de Florinda ficavam próximas e ele era de confiança, o então ex-escravo possivelmente negociou uma remuneração pelos serviços e a garantia de que poderia se hospedar naquelas terras.

    Não se sabe exatamente como os pais de João Cândido se conheceram. Ignácia continuou sendo escrava de Maria do Carmo, ao passo que João Felisberto pode ter seguido para qualquer lugar depois da alforria. Mas há uma grande probabilidade de que ele tenha se deparado com Ignácia quando juntava o gado de D. Florinda e dos seus filhos para mais uma viagem. Seja como for, o fato é que se casaram em 28 de junho de 1879, ele livre e ela escrava.

    Os registros encontrados demonstram que os dois adotaram novos sobrenomes após o casamento.  Ele passou a se identificar como João Felisberto Pires e a esposa, como Ignácia Cândido Pires. “Pires” por conta do sobrenome da família dos seus ex-senhores. E o “Cândido” pode ter vindo de D. Florinda Cândido Lima, esposa do falecido Gaspar Simões Pires, provavelmente como uma forma de reconhecimento pela alforria de João Felisberto. De acordo com o inventário de Gaspar Simões Pires, é possível que, 17 anos antes do nascimento de João Cândido, o casal tenha gerado sua primeira filha, Caetana. O tabelião não registrou que ela era filha de Ignácia, e o parentesco só foi conhecido por meio dos depoimentos de antigos moradores da Coxilha Bonita. Sabemos que Ignácia não era tão jovem e tinha uma aparência envelhecida, de aproximadamente 40 anos, quando se casou.

    João Cândido nasceu sete meses depois do casamento dos pais. Não se sabe se ele nasceu prematuro ou se já havia sido gerado antes da oficialização do casamento – o que reforça a ideia de que João Felisberto e Ignácia continuaram mantendo seu relacionamento mesmo depois do nascimento de Caetana. Naquela época, casar não era barato, e muitos casais pobres, livres ou escravos, viviam em concubinato. O menino foi batizado quase dois anos depois, em um oratório particular na Coxilha Bonita. E o registro de batismo revela outra novidade: ele nasceu em 15 de janeiro de 1880, embora o marinheiro reconhecesse o dia 24 de junho como o do seu aniversário.

    É bem verdade que, naqueles tempos, muitas pessoas não sabiam exatamente em que dia haviam nascido. O registro de batismo nos livros da igreja ficava nas paróquias das cidades, e se os pais se esquecessem de alguma data, em meio a tantos filhos, a solução era pedir ao padre uma consulta aos livros ou, quem sabe, dar como data o dia de aniversário do santo que deu nome ao filho: 24 de junho, por exemplo, é dia de São João. Outro dado que vale a pena ser mencionado é que João foi gerado por um homem livre e uma escrava. De acordo com a Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871, ele já nasceu livre, sendo, portanto, um “ingênuo”.

    Ignácia foi alforriada verbalmente em 9 de fevereiro de 1881, quando João Cândido já tinha mais de um ano de idade. Ela trabalhava para a família havia décadas, e parecia ter exercido muito bem suas funções enquanto era escrava. Além disso, se Caetana era realmente filha de Ignácia, ela já estaria forte e adulta para assumir o lugar da mãe – e já tinha filhos, que ajudariam nos afazeres da casa.

    É de se supor que a família tenha se mantido nas terras de Maria do Carmo Simões Pires e do marido, Firmino José Moreira, por um bom tempo, pelo menos até o alistamento de João Cândido na Escola de Aprendizes Marinheiros, em 1895. Possivelmente, João Felisberto e Ignácia arrendaram parte das terras dos seus antigos senhores e ali criaram as condições necessárias para a manutenção da família, sem se afastarem da filha Caetana – que ainda era escrava – e dos netos.

    Todos deixaram a Coxilha Bonita por volta da década de 1890. Caetana foi para a casa de parentes de Maria do Carmo e Firmino, o casal Gaspar Simões Fontoura e Gomercinda Dorneles Fontoura. Seus pais seguiram para outra cidade – muito provavelmente, São Jerônimo. Já João Cândido deixou a vida de tropeiro para morar no Rio de Janeiro, a capital federal da República, onde jurou bandeira, assumiu o posto de grumete e entrou definitivamente para a História do Brasil.

    Álvaro Pereira do Nascimento é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e autor de Cidadania, cor e disciplina na Revolta dos Marinheiros de 1910. Rio de Janeiro: Mauad, 2008.

    Saiba Mais - Bibliografia

    MOREL, Edmar. A Revolta da Chibata. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.
    ZARTH, Paulo Afonso. Do arcaico ao moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí: Unijuí, 2002.