Para um carioca do século XXI, Barão de Drummond é o nome da praça que é fim de linha de vários ônibus que ligam Vila Isabel a outros pontos da cidade. Para um carioca do fim do século XIX, o barão era João Batista Viana Drummond, um dos empresários mais influentes da corte. Participava de vários empreendimentos e investimentos, e era acionista da Cia. Ferro Carril Vila Isabel, que fazia com os bonds a ligação do bairro com o centro da cidade naquela época. Aliás, o próprio bairro nasceu de um loteamento ligado ao barão, que pretendia criar um bairro moderno, com traçado regular, ruas e avenidas largas. O que talvez pouca gente saiba é que o barão de Drummond foi também um dos responsáveis pela criação de uma instituição que marcou de forma inegável o cotidiano da cidade: o jogo do bicho.
Vila Isabel foi o primeiro bairro planejado da cidade do Rio de Janeiro. Ao sair das pranchetas e das mentes de arquitetos e engenheiros, apontaria para o futuro, para uma certa modernidade representada pelo ideal de ordem e civilização. Além da novidade, haveria um outro sentido para a sua construção sobre as terras da antiga Fazenda dos Macacos. A ação do homem, por meio de elementos adquiridos da técnica e da ciência, teria dominado a natureza e transformado um ambiente inóspito numa área urbana, servida por linhas de bondes e capaz de atender às primeiras necessidades da nascente vida urbana. Este projeto modernizante e civilizador incluía a criação de um parque localizado na encosta da Serra do Engenho Novo e o Jardim Zoológico previsto para ser instalado ali, onde nasceria o jogo do bicho.
Em 25 de agosto de 1884, o ainda comendador Drummond enviou uma petição à Câmara Municipal com uma consulta sobre a possibilidade de instalação do Zoológico. Os argumentos apresentados reiteravam a necessidade da existência de um estabelecimento deste tipo numa cidade de tal porte e chamavam a atenção para o “embelezamento e os elementos de estudo” a serem proporcionados. Se o bairro dominou a paisagem, o Jardim enjaulou os animais e os mostrou numa grande coleção. Era o homem brasileiro dominando a flora e a fauna – enfim, “civilizando-se”.
A reputação do empresário foi importante para a aprovação do pedido. Pelo contrato firmado entre o comendador e a Câmara, a empresa por ele estabelecida se comprometeria a observar os “preceitos da arte moderna”, guardar as “prescrições higiênicas aconselhadas pela ciência” e “competir com os melhores desse gênero”. Estas exigências constavam do contrato e tinham como objetivo atender a determinados critérios de civilidade e modernidade.-
Em 6 de janeiro de 1888, o Jardim Zoológico de Vila Isabel foi aberto de modo provisório. Surgia um novo espaço de lazer, onde o público poderia se divertir em animados bailes públicos, no circo de cavalinhos e com os mais variados espetáculos. A inauguração “oficial” só foi feita em julho, mas nem assim a imprensa carioca se animou, publicando apenas uma ou outra nota, aqui ou acolá. Mas ainda no ano de abertura do Zoológico, um comerciante contava a dificuldade que enfrentou com a família para chegar ao parque, por conta dos bondes lotados, todos se dirigindo para lá. Ao notar que já estavam viajando como pingentes, saltaram do bonde e adiaram o passeio. Fazer uma visita aos animais era um divertimento bastante procurado e o empreendimento se tornou um sucesso. Nesse mesmo ano, o comendador Drummond recebeu o título de barão das mãos do imperador Pedro II.
Dois anos mais tarde, em 18 de setembro de 1890, o barão de Drummond revelou à Intendência Municipal da Capital Federal sua pretensão de transformar o Jardim Zoológico em “Jardim de Aclimação não só de animais como de plantas exóticas e indígenas”! Mas o barão argumentava que a subvenção anual de dez contos de réis oferecida pela municipalidade não seria suficiente para a manutenção adequada do parque e dos animais.
Deste modo, ele se dirigia novamente aos representantes do povo para pedir um auxílio, não mais em forma de dinheiro público, mas agora na forma de exploração de jogos lícitos dentro do Jardim. Pelo parecer emitido quatro dias depois, em resposta à petição do barão de Drummond, por um certo Piragibe, a exploração de jogos não traria nenhum “inconveniente higiênico”, e os visitantes do parque teriam “notória vantagem (...) física, moral e intelectual”. -
Tanto a petição quanto o tal parecer chamavam a atenção para os perigos dos jogos: os vícios próprios do jogo – como a compulsão para as apostas – e o desprezo pelos principais aspectos civilizadores envolvidos no projeto do Jardim Zoológico. Mas a confiança no espírito público e empreendedor de Drummond e de seus sócios levou a Câmara a conceder à companhia o direito de explorar “jogos públicos lícitos e mediante módica contribuição, ficando sujeitos à imediata fiscalização da polícia”.
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Assim, com o intuito de ajudar a manter o parque em funcionamento, alguns jogos foram liberados para as dependências do Zoológico. Os jogos proibidos seriam aqueles que dependessem exclusivamente da sorte e do azar, conforme o Código Penal de 1890. A companhia passa então a oferecer bilhar, carteado, jogo da pelota, frontão, e o novo jogo dos bichos. O visitante recebia um ticket com a figura de um animal impressa. Pendurada num poste, a cerca de três metros de altura, perto do portão de entrada do parque, havia uma caixa de madeira, onde ficava escondido um quadro retratando o animal do dia – escolhido previamente pelo barão de uma lista de vinte e cinco bichos que ia do avestruz à vaca, passando pela borboleta e pelo jacaré.
O primeiro “sorteio” ocorreu num domingo, 3 de julho de 1892, quando uma série de outros divertimentos também foram apresentados ao público. Aos festejos compareceram políticos, empresários, senhoras da sociedade e outras figuras importantes, ao lado de muitos populares que foram lá para conferir as novidades do parque do barão. Por ser um dia especial, as companhias de bonds colocaram carros especiais para levar o público e os convidados até as dependências do parque. Contudo, nenhum novo animal estava sendo apresentado e nenhuma espécie exótica da flora brasileira – e muito menos indígenas! Às cinco horas da tarde, a caixa foi aberta e todo o público presente pôde, finalmente, descobrir qual era o animal encaixotado e saber quem teria direito ao prometido prêmio de 20 mil-réis para cada acertador – vinte vezes o valor pago pela entrada do Zoológico. Na hora marcada, o barão foi até o poste, revelou o avestruz e fez a alegria de 23 sortudos visitantes. -
Pela repercussão na imprensa diária, nota-se que a estréia do jogo dos bichos não só não passou despercebida como parece ter obtido mais repercussão que a própria inauguração do Zoológico. Jornal do Brasil, Jornal do Commercio, O Paiz, Diário do Commercio, Diário de Notícias, Gazeta de Notícias e O Tempo foram alguns dos jornais que deram informações sobre os acontecimentos da véspera. Alguns, inclusive, informaram qual o animal que havia “vencido”. Tanto o empreendimento quanto seu diretor e as diversões recém-inauguradas foram saudados com entusiasmo pela imprensa, pelos políticos, pelos homens de ciência, pelas senhoras elegantes e por pessoas comuns, cujos trajes não seriam tão elegantes assim, segundo os padrões afrancesados da elite de então.
O Jardim Zoológico transformou-se rapidamente num espaço bastante procurado para o lazer. Isto pode ser observado pelos prêmios pagos. Se no primeiro dia o avestruz deu direito a 460 mil-réis de prêmios, duas semanas depois o cachorro pagaria mais de dois contos de réis em prêmios. Os jornais também confirmavam grande número de visitantes, assim como as novas linhas de bonds criadas especialmente para maior comodidade do público.
Para incrementar ainda mais os lucros, logo a direção do Jardim Zoológico resolveu pôr à venda os bilhetes para o parque fora dos muros do estabelecimento. Em O Tempo, poucos dias depois da inauguração dos jogos, foi publicado um anúncio pago pela Companhia Jardim Zoológico, no qual se informava a venda de bilhetes para o parque na Rua do Ouvidor – a mais movimentada do centro da cidade e bem distante dos portões de entrada do Zôo. Assim, o jogo passou a ser vendido fora das dependências do parque. Ora, se para comprar o bilhete que dava direito ao prêmio prometido não era preciso atravessar os portões do parque, pode-se supor que várias pessoas compravam os tais tickets e ficavam à espera da abertura da caixa no Zôo. Após a transmissão da notícia por meio do “boca a boca”, os ganhadores poderiam ir buscar seu prêmio fixo de vinte mil réis. No próprio bilhete havia uma inscrição que facilitava esta prática: “VÁLIDO POR 4 DIAS”. Assim, o apostador não precisava entrar no parque, muito menos estar lá no momento da revelação do bicho.
Mas todo o clima de festa em torno do Jardim e de suas diversões não demoraria a findar. Com inúmeros apostadores correndo atrás dos “animais” para conseguir algum dinheiro fácil, as autoridades começaram a encarar o jogo do bicho com desconfiança. A mudança do tratamento que o poder público municipal – Legislativo e Executivo – dispensava à Companhia do Jardim Zoológico foi inevitável. Se até a vinculação de prêmios ao bilhete de entrada esse tratamento era o mais favorável possível, agora tudo mudava de figura. -
O processo de transformação do parque dos animais de “estabelecimento útil e agradável” em “antro de jogatina” foi rapidamente levado a cabo pelas autoridades, que consideravam revoltante a afluência de pessoas ao estabelecimento com o objetivo de apostar. O cronista Luiz Edmundo confirma esta visão ao afirmar que as pessoas se transformavam em apostadores quando escolhiam os animais impressos em seus tickets –como um cavalheiro que, ao entregar “ao bilheteiro uma nota de cinco mil-réis”, teria feito o seguinte pedido: “Um porco, uma vaca, um macaco, um camelo e um cachorro”.
Transformado em escândalo, o processo para a proibição do sorteio dos bichos no parque do barão de Drummond estava aberto. Apenas vinte dias após a inauguração do jogo, o jornal O Tempo publicou um ofício dirigido pelo chefe de polícia ao 2º delegado, responsável pela repressão aos jogos, no qual ele afirmava ser o jogo do bicho um “verdadeiro jogo de azar” e, como tal, sua prática deveria ser proibida. Pela fala do representante da lei, nota-se a preocupação da maior autoridade policial com a prática de se comprar bilhetes do Jardim em função da esperança de ganho. No mesmo texto, faz-se menção a pessoas lesadas pelo parque, por não terem recebido o prêmio prometido. Além disso, a loteria, por ser um jogo de azar, era considerada ilegal, de acordo com os artigos 369 e 370 do Código Penal de 1890. Assim, o sorteio dos animais no Zoológico não chegou a durar três anos.
O cerco começou a ser fechado em 1º de janeiro de 1895, quando foi publicado o Decreto no 126, que limitou a ação dos frontões e bookmakers na cidade do Rio de Janeiro. Os frontões eram espaços destinados a competições esportivas onde as apostas eram permitidas. Nestes locais havia corridas a pé, de bicicleta e de velocípede, entre outras disputas. Já as agências de bookmakers vendiam poules das mais diversas apostas, permitidas ou não, inclusive do jogo do bicho. A partir daí, percebe-se um processo que culminaria com a proibição do jogo do bicho em abril do mesmo ano. Antes de a decisão ser tomada em definitivo, o prefeito Francisco Furquim Werneck de Almeida acionou a Procuradoria dos Feitos da Fazenda Municipal para que fossem examinados os contratos firmados entre a Prefeitura e a Companhia do Jardim Zoológico. O objetivo já era bastante claro: o rompimento dos acordos firmados entre as partes, fundamentalmente no ponto referente à exploração de jogos.
Com o processo de proibição do sorteio dos animais no Jardim Zoológico concluído, os bichos do “jogo do barão” teriam que encontrar novos lugares para sobreviver. Neste sentido, a dispersão do jogo do bicho fora dos muros do Zôo encontrou terreno fértil no crescimento ocorrido na cidade do Rio de Janeiro entre 1890 e 1910. Estes 20 anos registraram um expressivo aumento da população, de circulação de dinheiro e da oferta de diversões, entre as quais estavam incluídas as loterias. Havia uma imensa quantidade de bilhetes sendo vendidos pela cidade, em lojas de bookmakers, bares, armazéns de secos e molhados, quiosques e por vendedores ambulantes. Havia a venda dos bilhetes legais – como os de algumas Irmandades ligadas à Igreja Católica e de alguns estados da federação – e dos ilegais, como os de outros países e de determinados estados. A Câmara ficava encarregada de definir que loterias teriam licença para ser vendidas na cidade do Rio de Janeiro. Contudo, mesmo ilegais, vários bilhetes continuavam circulando ivremente. -
Com a existência desse ativo mercado de loterias na capital federal no momento da criação do sorteio do barão no Jardim Zoológico, o início das vendas longe dos portões de entrada do parque logo permitiu que o jogo do bicho passasse a ser mais uma possibilidade de se tentar a sorte. Além disso, a participação dos vendedores ambulantes de loterias parece ter tido importância fundamental no sucesso do jogo entre os apostadores.
Com a ida para as ruas, o jogo do bicho acabou passando por algumas adaptações, já que o quadro do barão não existia mais. Assim, a primeira modificação foi a vinculação entre bichos e números – posteriormente viria a divisão em grupos e dezenas. Uma das formas de se determinar o bicho do dia era esperar pelo resultado final do movimento da alfândega. A centena final seria o resultado do bicho. Nas primeiras décadas de sua existência, o jogo do bicho tinha várias extrações simultâneas, e pode-se supor que alguns bicheiros faziam seus próprios sorteios, assim como alguns quiosques. A idéia de um sorteio único, válido para a maior parte das bancas de jogo do bicho no Rio de Janeiro surgiu na década de 1940, com o PARATODOS, que passa a ser adotado pela maior parte dos banqueiros. Provavelmente, a centralização do sorteio foi decorrência direta da concentração de capital em torno do jogo.
É importante destacar que vários desses trabalhadores exerciam seu ofício legalmente, pagando uma licença à municipalidade. Disputando a clientela com os licenciados, havia aqueles que decidiam não pagar para trabalhar e iam às ruas correndo o risco de perder os bilhetes e o dinheiro. Além desses, havia ainda os vendedores ambulantes empregados das lojas de bookmakers, cujas licenças para ir às ruas, portando a sorte ou o azar de alguém, eram pagas pelos seus empregadores.
A existência dessa variada gama de vendedores confirma que a cidade tinha grande intimidade com os jogos de azar e as loterias. O jogo do bicho não inaugurou um novo mercado no Rio de Janeiro nem revolucionou algumas práticas, sendo apenas mais uma loteria entre tantas disponíveis. E, neste início, dividia espaço com outras. Um vendedor ambulante não oferecia apenas o jogo do bicho para seus clientes, mas a Loteria do Espírito Santo, da Bahia, do Maranhão ou de alguma Irmandade. Os vendedores do jogo do bicho, portanto, aproveitaram-se de práticas já existentes tanto para oferecê-lo como para vendê-lo nas ruas. -
Deste modo, pode-se dizer que o jogo do bicho tem duas origens. A primeira, dentro do Jardim Zoológico e a segunda, nas ruas da cidade. Ambas tiveram o poder público como patrono; tanto uma como a outra foram legítimas e legitimadas. O processo de criminalização do jogo do bicho – iniciado nos primeiros dias de sua prática no Jardim Zoológico – jamais conseguiu detê-lo. A pergunta é: por que o poder público jamais conseguiu acabar com o jogo do bicho? Alguns apontam a corrupção policial, outros, a sua popularidade (jogo barato, acessível às camadas mais pobres). Há até aqueles que entendem sua permanência como uma forma de resistência das classes populares aos poderosos.
Mas a verdade é que, tanto para apostadores como para vendedores, a prática de comprar e vender bilhetes de loterias era comum. Não foi sem motivo que o barão e sua nova atração foram saudados pela imprensa e por importantes elementos da “boa sociedade” com adjetivos positivos num primeiro momento. A imprensa também teve importante papel nessa legitimação, com vários periódicos criados em função do jogo circulando nas duas primeiras décadas do século XX. Além disso, envolto nas suas próprias ambigüidades, o poder público responsável pela capital federal jamais conseguiu definir uma estratégia efetiva para o combate aos chamados “bicheiros” e deixar claro por que algumas loterias eram permitidas e outras não.
Se no começo o jogo do bicho era legitimado por aqueles que o viam apenas como mais uma atração “útil e agradável”, para os apostadores ele era mais uma loteria entre tantas outras. E, nesse mercado concorrido, o “bicho” se saiu muito bem, tendo mais sucesso que a maioria dos seus concorrentes.
É surpreendente a trajetória cumprida pelos nossos dois principais personagens, o Jardim Zoológico de Vila Isabel e o jogo do bicho. Após a proibição do sorteio do barão, o Jardim viveu imensas crises e acabou passando de mão em mão até fechar suas portas, no início da década de 1940. O barão de Drummond, aliás, morreu em 1897. Já o jogo do bicho conseguiu se propagar rapidamente para vários estados da federação e até hoje é praticado livremente, mesmo ainda sendo considerado pela legislação uma contravenção penal. Deste modo, para tristeza dos legisladores, o “vício do jogo” teria derrotado as virtudes do projeto educador/civilizador representado pelo parque dos animais. Ou, na ótica conservadora do cronista Luiz Edmundo, o jogo do bicho foi uma “diversão ingênua que o povo danou e perverteu”.FELIPE MAGALHÃES É DOUTOR EM HISTÓRIA PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO COM A TESE "GANHOU, LEVA, SÓ VALE O QUE TÁ ESCRITO - EXPERIÊNCIAS DE BICHEIROS NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO 1890-1960", DE 2005. É PROFESSOR VISITANTE DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA.
Os bichos fugiram do Zôo!
Felipe Magalhães