Os camelôs e sua sina

Lia Jordão

  • A cena é comum nas grandes cidades brasileiras: camelôs atentos aos agentes de fiscalização urbana e prontos para recolher em segundos os produtos expostos, evitando a apreensão de sua mercadoria. O que muita gente não sabe é que esta cena é muito antiga.

    A Representação, com abaixo-assinado, dos comerciantes lojistas de Vitória, pedindo providências contra o comércio ambulante, guardada na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional, é datada de agosto de 1824, provando que esse imbróglio entre economia formal e informal vem pelo menos desde o início do século XIX. Dois documentos anexados mostram também que o estabelecimento de uma lei para solucionar o problema não foi suficiente.

    Segundo a Memória estatística da província do Espírito Santo escrita no ano de 1828, de autoria deInácio Acioli de Vasconcelos,primeiro presidente da província, Vitória tinha naquele momento 35 estabelecimentos comerciais de “fazendas secas” ou tecidos em geral. Isso indica que o movimento teve uma adesão expressiva, já que há 23 assinaturas no documento dirigido ao Ouvidor e Corregedor da Comarca de Vitória, José Libânio de Souza. Após uma medida de aperto fiscal, “dizem os mercadores de lojas desta cidade abaixo assinados, que sendo público andarem pelas ruas vários mascates vendendo fazendas secas a varejo, causando assim um grande prejuízo a comércio das mesmas lojas, que se vêm na precisão de fecharem suas portas, por não poderem pagar o novo imposto de 12.800 réis pelo atraso que sofrem no seu giro de comércio”. Em seguida, culpam os mascates – oriundos de outras localidades e cujo trabalho é, por natureza, itinerante – pela evasão de capitais da província, que vivia, nos primeiros anos após a independência (1822), problemas econômicos graves: “estes mesmos Mascates só se interessam em venderem (sic) suas fazendas, e levarem (sic) o seu produto em moeda, ficando assim a Terra cada vez em maior decadência pela falta de numerário, em que se acha.” Expostos os motivos, solicitam a proibição da atividade em questão e a punição dos que desrespeitarem a determinação com “a pena que V.S. [vossa senhoria] for servido arbitrar”.

    O julgamento do mérito é registrado na mesma via da Representação: considerada “muito justa” a demanda, é proibido o “semelhante giro de negócio”. As autoridades providenciam, então, a publicação do edital regulamentando a decisão, que também está guardado na Divisão de Manuscritos: “Faço saber a todos os Mascates que sendo-me representado o grave prejuízo e dano pelo atraso que experimentam (…) os Mercadores de Lojas desta Cidade, (...) ordeno que Mascate ou outra qualquer pessoa que acha nesta ocupação, jamais possa de hoje em diante vender as ditas fazendas pelas ruas desta cidade debaixo da pena de pagar cada um que a contrário fizer a quantia de vinte mil réis para as despesas do Conselho”.

    O comércio ambulante de tecidos, entretanto, não é totalmente proibido, mas é empurrado para as regiões marginais, sendo os mascates autorizados a atuar fora da cidade. Esta exceção faz lembrar as décadas mais recentes de nossa história, com a instituição dos chamados “camelódromos”. Como hoje, os legisladores de então sabiam que havia um desejo de consumo que não podia ser satisfeito pelos canais oficialmente estabelecidos.

    O Ouvidor, na falta de melhor recurso de comunicação, garante que a decisão será “publicada pelas ruas públicas e afixada no lugar costumado”.

    Essas providências não foram suficientes para pôr um fim à disputa. Os mercadores de lojas dirigiram-se à Câmara Municipal para tentar impedir a resistência dos mascates: “agora consta aos suplicantes que apareceram indivíduos requerendo à V.V.S.S. [vossas senhorias] a fim de obterem licença para continuarem na mesma mascatiação (sic) valendo-se de pretextos frívolos (…) e interesses particulares”. Suplicam então que a matéria seja levada à “augusta presença de Sua Majestade Imperial”, D. Pedro I, para que ele pudesse intervir em favor dos comerciantes.

    Dois séculos após a redação desta Representação, sua atualidade permanece evidente. O conflito entre a economia formal e a informal não foi superado e vai muito além de uma proibição e da instituição de multa aos infratores. Enquanto isso, camelôs permanecem em alerta, porque a qualquer momento pode chegar a senha: “Olha o rapa!”