Os males do progresso

José Carlos Pinheiro Prioste

  • A assinatura da Lei Áurea no Largo do Paço Imperial foi um dos momentos mais marcantes da história da antiga capital federal. Tanto que a população, no dia 13 de maio de 1888, se aglomerou na frente do prédio só para ver a princesa Isabel acenando da janela. No meio da multidão, um menino, acompanhado do pai, jamais se esqueceria daquele momento. Mais tarde, já adulto, ele lembraria, em um de seus relatos, que a aparição da “Redentora” provocou uma ovação com “palmas, acenos com lenço, vivas”. Esse foi apenas um dos episódios históricos lembrados nas crônicas do escritor carioca Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922). Publicadas por vários órgãos de imprensa entre 1903 e 1922, hoje elas podem ser lidas na antologia Toda crônica.

    Esses textos não só falam das diversas modificações pelas quais o Rio de Janeiro passou durante o período, como fazem fortes críticas à República Velha (1889-1930). Ao contrário dos primeiros cronistas da história brasileira, que transcreveram suas impressões sob o impacto de uma paisagem que se assemelhava ao paraíso, o autor de Tristefim de Policarpo Quaresma (1915) observou outro cenário: o ambiente urbano e suas reformas. O ufanismo do personagem principal do romance foi descartado em uma das primeiras crônicas publicadas por Lima Barreto no jornal humorístico Tagarela (1902-1904), que não via o país pelo prisma da grandiosidade. Para o cronista, tudo definhava “sob o nosso céu de fogo”, pois se retirássemos “da superfície imensa do Brasil as partes que são de alagadiços, as em que há secas, as cobertas de florestas, as estéreis, ela ficaria reduzida em muito”. Seu inconformismo em relação à realidade punha em xeque a visão que os primeiros cronistas europeus, como Pero Vaz de Caminha, tiveram da América como uma terra de futuro promissor.

    A construção do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, iniciada em 1905, por exemplo, era vista pelo escritor não como sinal do progresso, e sim como algo inviável, pois o seu ambiente luxuoso e repleto de mármores não estava sendo planejado para o povo. Revolta maior lhe causou a nomeação, para diretor do teatro, do escritor Coelho Neto (1864-1934), que levaria para sua equipe a fina flor da mocidade literária do Rio de Janeiro, “estranha à cidade pelo nascimento, pelos sentimentos e convicções”.

    Nesse novo cenário que se construía, Barreto se alinhava com os excluídos e se definia como possuidor da alma de um bandido tímido diante de um palácio monumental. Daí frequentar pouco a Biblioteca Nacional, pois “como é que o Estado quer que os malvestidos, os tristes, o que não têm livros caros, os maltrapilhos (...) avancem por escadarias suntuosas, para consultar uma obra rara?”

    Barreto também denunciava em suas crônicas que os postos de comando na polícia da cidade eram dados a pessoas de fora, que desconheciam completamente a geografia carioca. Um artigo publicado em 1915 na revista Careta noticiava a nomeação de um auxiliar de delegado que vinha de outra cidade. Segundo o texto, o sujeito ia e voltava do trabalho de automóvel e se inteirava das coisas do Rio de Janeiro – como, por exemplo, a gíria usada pelos meliantes – por meio da leitura. Mas um dia, ao andar pela Avenida Central, símbolo da modernidade carioca de então – atual Avenida Rio Branco –, ele notou um movimento estranho em uma das inúmeras ruelas da cidade e chegou a pensar em alguma greve ou revolução. Quando perguntou a um guarda que rua era aquela, este simplesmente lhe disse que era a do Ouvidor, antigo centro dos acontecimentos sociais e políticos do Brasil, onde então se reuniam as “damas elegantes, os moços bonitos, os namoradores, os amantes, (...) camelots e os sem-esperança”.

    A derrubada do Convento da Ajuda – que fora vendido a alguns ingleses e americanos para a construção de um grande hotel de dez andares – também não foi bem assimilada pelo articulista, que protestou em um texto de 1911. Para ele, o prédio não possuía a beleza de um Theatro Municipal, mas deveria ser preservado por se tratar de um exemplo de arquitetura típica do século XVIII. Sete anos depois, esse mesmo convento motivou outra crônica, pois a antiga construção acabou não dando lugar a um hotel, e sim ao novo prédio do Senado. O escritor lembrou que a Constituição de 1891 exigia a transferência da capital da República para o planalto central do Brasil. De acordo com Lima Barreto, o Rio de Janeiro era uma sede provisória do poder e não deveria hospedar edifícios tão caros e imponentes.

    O inconformismo constante do cronista se dava porque ele renegava qualquer remodelamento da cidade: “esse furor demolidor vem dos forasteiros, dos adventícios, que querem um Rio-Paris barato ou mesmo Buenos Aires de tostão”. Essa obsessão pela capital argentina, segundo ele, não fazia sentido, pois era incoerente destinar as camadas sociais mais baixas à periferia da cidade.

    Outro tema que deixou o escritor indignado foi a remoção das grades do Passeio Público, ainda mais depois que Coelho Neto, uma das personalidades públicas mais atacadas por Lima Barreto, passou a defender a manobra. A derrubada de árvores de mais de meio século, como as mangueiras e os tamarineiros dos subúrbios, era vista como fruto da avidez do “machado impiedoso do construtor de avenidas”.  A cidade, que já vivia à mercê das chuvaradas na época, sofria uma transformação comandada pelo prefeito da capital federal, Pereira Passos, cujo principal feito foi a Avenida Central. Esta obra provocou a demolição de 641 casas, teve como engenheiro responsável Paulo de Frontin e foi inaugurada em 1904. Para Lima Barreto, havia uma contradição nessa reforma na paisagem da cidade, que não trazia a solução de problemas fundamentais para a vida dos cidadãos, pois demonstrava muita preocupação com os aspectos externos, com as fachadas, e não com o que havia “de essencial nos problemas da nossa vida urbana, econômica, financeira e social”.

    Por essas e outras, a cidade que se civilizava era constantemente ironizada por Lima Barreto. Até porque precisou se mudar para os distantes bairros suburbanos por conta da urbanização forçada. Barreto residiu durante anos em Todos os Santos, no Rio de Janeiro, onde, de acordo com os jornais da época, faltava policiamento. Para o cronista, entretanto, acostumado a chegar tarde em casa, “os pequenos furtos de galinhas e coradouros” não exigiam “um aparelho custoso de patrulhas e apitos”.

    Mas, mesmo na periferia, o escritor continuava atento ao que ele acreditava ser um mau uso da gestão pública. O senador Augusto de Vasconcellos, que atuava na região de Campo Grande, na Zona Oeste, e certa vez chegou a designar um inspetor escolar para reger uma escola de ensino básico no bairro, era merecedor de todo tipo de crítica. Afinal, o político havia passado 20 anos sem providenciar melhoramento algum para o local. O bairro de Santa Cruz, próximo a Campo Grande, figurou em um episódio narrado no livro Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909), que relata o assassinato de uma mulher e de um homem, que foram encontrados esfaqueados e decapitados. O que hoje é fato corriqueiro no noticiário sensacionalista sobre a degradação e a violência na periferia chamou a atenção na época justamente por contrariar a vida pacata de uma região então denominada zona rural e agora conhecida como oeste: “a notícia espalhou-se rapidamente, com uma rapidez de telégrafo, com essa rapidez peculiar às notícias sensacionais que nas grandes cidades se transmitem de homem a homem quase com a velocidade espantosa da eletricidade”.

    LimaBarreto morreu em 1922, ano da Semana de Arte Moderna, que reivindicava, entre outras coisas, a adoção de uma linguagem mais próxima da fala cotidiana em contraposição à dicção rebuscada dos doutores – mudança que o articulista tanto defendera. Lima não chegou a ver essas mudanças serem adotadas na prática, assim como não pôde acompanhar, mais tarde, o fim da República Velha. De qualquer maneira, as transformações que vieram a reboque não modificaram em nada a realidade dos excluídos.

     

    José Carlos Pinheiro Priosteé professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autor da tese “A unidade dual: Manoel de Barros e poesia” (UFRJ, 2006).

     

    Saiba Mais - Bibliografia

     

    BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.

    BARRETO, Lima. Prosa seleta. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006.

    FIGUEIREDO, Carmem Lúcia Negreiros de. Trincheiras de sonho – Ficção e cultura em Lima Barreto.Riode Janeiro: Tempo Brasileiro, 1998.

    REZENDE, Beatriz e VALENÇA, Rachel (orgs.). Toda crônica. Rio de Janeiro: Agir, 2004.