Os Negros do Norte

Luciano Mendonça de Lima

  • Os escravos não eram nem vítimas inertes nem heróis da resistência: negociavam e impunham pela força, quando preciso, o respeito à sua dignidade. Ainda que dentro do cativeiro, exigiam o direito a uma vida menos opressiva. A história da Campina Grande, município situado no agreste da Paraíba, está pontilhada de muitos destes episódios feitos de dor e sofrimento, mas também de altivez e coragem, expressando lutas individuais e coletivas pela liberdade.

    Não houve uma atividade socioeconômica no antigo município de Campina Grande em que os africanos e seus descendentes não estivessem empregados. Lá estavam eles nos algodoais, nas fazendas e currais, plantando e colhendo o feijão, o milho e a mandioca, extraindo da cana-de-açúcar a aguardente e a rapadura nas engenhocas. Desempenhavam, ainda, as mais variadas funções domésticas. Trabalhavam como ferreiros, sapateiros, marceneiros, pedreiros, e nos demais ofícios artesanais. Sua presença se faria notar ainda no pequeno comércio, feito principalmente nas feiras semanais, onde compravam, vendiam e trocavam os mais diversos tipos de mercadorias e bens, resultantes de seu próprio trabalho autônomo, de suas roças ou de outros expedientes.


    A violência, física ou simbólica, era parte constitutiva do regime escravista. Os senhores tinham à sua disposição um grande número de recursos para reprimir seus escravos. Contudo, os proprietários não podiam fazer o que bem entendessem, pois, além das leis oficiais, havia um conjunto de práticas costumeiras que, caso fossem rompidas unilateralmente, poderiam ter sérias conseqüências políticas.

    Nem só da dureza do trabalho e das marcas da violência era feita a existência dos escravos. Por mais que seus donos tentassem transformá-los em coisas, eles procuravam preservar sua dignidade humana impondo limites à exploração econômica e à opressão social. Para tanto, utilizaram muitas estratégias, de acordo com os contextos históricos em que estiveram inseridos ao longo do tempo. Este processo complexo, feito de embates, conflitos, alianças e negociações cotidianas, era gestado no mundo do trabalho e se estendia a todas as dimensões da vida social.


  • A fuga foi um dos recursos usados com mais freqüência pelos escravos para conquistar a liberdade, definitiva ou provisória. Entretanto, ela podia adquirir diferentes significados e objetivos. Quando Palmares, na região de Pernambuco, foi destruído, alguns de seus remanescentes fundaram um novo quilombo, chamado Cumbe, em território paraibano, no início do século XVIII. A presença do termo “Cumbe” na toponímia da região pode ser um indício de que o quilombo se localizava nas imediações de Campina Grande, servindo de refúgio para alguns escravos locais. 

    Outros escravos fugidos trilhavam caminhos diferentes, tentando reatar vínculos sociais e afetivos que a escravidão teimava em romper. Este parece ter sido o caso do escravo Manoel, que ao fugir, em 1866, levou consigo um cavalo furtado. Segundo seu proprietário, ele teria rumado para “o sertão da província do Ceará”, talvez em busca de algum parceiro que ficara para trás. Para isso, chegou até a mudar de nome, certamente para dificultar uma possível captura.

    No Brasil de meados do século XIX, havia um intenso tráfico de escravos das províncias do norte para as do sul. Em questão de anos, levas e mais levas de cativos, majoritariamente homens e jovens, foram transferidas de áreas decadentes para as prósperas regiões cafeeiras. Como muitas outras vilas e cidades da região, Campina Grande esteve conectada a essa trama histórica mais ampla: seus proprietários se aproveitavam da conjuntura favorável para ganhar uns bons contos de réis.

    Nem sempre as coisas corriam conforme os cálculos pragmáticos. Muitos escravos se recusavam, de diferentes maneiras, a embarcar para o sul.  Os que de fato embarcaram e chegaram a seus destinos, os temidos “negros maus vindos do norte”, contribuíram para acelerar a crise da escravidão, ao minarem o domínio senhorial com o aumento da criminalidade e das fugas em massa.

  • Os escravos que conseguiram ficar no norte redefiniram, de alguma maneira, as relações cotidianas com os senhores.  É o que revela uma história protagonizada pelos escravos Antonio e Firmino, ambos pertencentes ao coronel Alexandrino Cavalcante de Albuquerque, um dos maiores escravocratas de Campina Grande. Quando souberam que iam ser vendidos para “o sul”, tramaram a morte de Antonio Freire de Andrade, que havia sido encarregado pelo senhor de vendê-los. Na noite de 7 de outubro de 1872, aproveitando a ocasião em que o homem que pretendiam matar estava deitado em uma rede, deram-lhe duas facadas. A primeira atingiu o braço e a outra, a coxa: Freire escapou por pouco. Mais do que ninguém, os escravos sabiam o que estava em jogo – velhas relações de amizade, parentesco e trabalho, pacientemente tecidas no tempo, podiam ser desfeitas de uma hora para outra. Além disso, caso a negociação se consumasse, o futuro que os aguardava – novas e incertas condições de vida em alguma fazenda de café do Rio de Janeiro, de São Paulo ou de Minas Gerais – era pouco alvissareiro. Nessa encruzilhada que a história os colocou, fizeram uma opção de risco, é verdade, mas em nome de direitos que consideravam perigosamente ameaçados naquele momento.                                 

    Em momentos de comoção social, quando a comunidade dos homens livres quase sempre ficava dividida, os escravos aproveitavam a ocasião para fazer reivindicações coletivas. Entre dezembro de 1851 e janeiro de 1852 eclodiria em algumas cidades e vilas do norte, entre elas a Vila Nova da Rainha, futura Campina Grande, a revolta do Ronco da Abelha. O motor do movimento foi a notícia da instituição dos decretos nº 797 e 798, de 18 de junho de 1851, relativos à organização do censo geral do Império e ao registro civil de nascimentos e óbitos. Até então, tais atribuições, especialmente o batismo e o óbito, estavam nas mãos dos padres locais – em quem, bem ou mal, a população confiava. Com os novos decretos, essas funções passavam para as mãos de burocratas e membros das elites locais, alguns deles donos dos cartórios e com fortes interesses próprios. Como grande parte dos homens livres pobres havia passado pela experiência da escravidão, o temor de que o censo e o registro civil abrissem caminho para a reescravização logo se espalhou. Por isso, os registros foram considerados “papéis do cativeiro”.

    Eventos semelhantes, mas com intensidade redobrada, voltariam a ocorrer mais de vinte anos depois, em fins de 1874, durante a revolta do Quebra-Quilos, cujo epicentro foi Campina Grande. Populares saíram às ruas para queimar os papéis dos cartórios, hostilizar autoridades e quebrar pesos e medidas do novo sistema métrico decimal que havia sido instituído. Alguns dias depois, um contingente de negros entrou em cena, só que com objetivos próprios. Subdivididos em pequenos grupos, liderados pelo nosso já conhecido Firmino, por um seu irmão também cativo de nome Manuel do Carmo e pelo liberto Benedito, eles procuraram negociar com as autoridades civis e eclesiásticas da cidade, exigindo – na lei ou na marra – a liberdade. Agindo dessa forma, deixaram em pânico senhores e autoridades, que, comandados pelo coronel Alexandrino Cavalcante de Albuquerque, conseguiram reprimir, a ferro e fogo, a insurreição negra em curso.

    Os arquivos de Campina Grande também preservam documentos que testemunham um tipo de luta priorizada pelos escravos, especialmente nas últimas décadas do século XIX, quando a escravidão se deslegitimava paulatinamente, em função de transformações internas e externas. Trata-se das ações cíveis, uma possibilidade legal aberta aos escravos para pleitear a liberdade junto aos seus senhores. Uma dessas histórias foi protagonizada pela preta Joana, filha da escrava Alexandra, irmã das também cativas Benedita, Maria e Ana e mãe do escravinho Damião. Joana tentou negociar sua liberdade por meios pacíficos, apresentando ao seu senhor, o capitão Jerônimo Paz Barbosa Junior, 500 mil-réis, quantia pela qual havia sido avaliada e que pagaria com o pecúlio que recebera pelos serviços prestados.  Como este se recusasse a alforriá-la, exigindo um valor mais alto, Joana procurou um curador, através do qual levou seu senhor às barras dos tribunais locais em 1876. Para tanto, contou com uma extensa rede subterrânea de solidariedade, formada por seus parentes e outros companheiros de cativeiro.

  • Apesar de tudo isso, um dos capítulos esquecidos da história de Campina Grande, município do interior da Paraíba, certamente foi o da escravidão. Com raras exceções, o tema figura como mera nota de rodapé nos textos sobre a história da região. A exemplo de todo o Brasil, o antigo município de Campina Grande teve na escravidão, particularmente africana, um de seus fundamentos, pelo menos até a segunda metade do século XIX. O “progresso” da Rainha da Borborema (como a cidade é conhecida), ainda hoje exaltado em prosa e verso por suas elites, se fez em cima de “costas negras”,  como resultado de um intenso processo de exploração de muitas gerações de escravos e seus descendentes.

    A partir da segunda metade do século XVII, grupos de sertanistas vindos da Bahia exploraram não só o interior da antiga capitania da Paraíba, mas também as de Pernambuco, Rio Grande do Norte e Ceará. Em um cenário histórico de intensos conflitos, os primeiros escravos locais pertenciam a grupos indígenas da etnia tapuia explorados pelo clã dos Oliveira Ledo, um dos mais destacados da região e tido por alguns como um grupo de verdadeiros heróis civilizadores.

    Logo em seguida começaram a chegar os primeiros africanos, em função da expansão das atividades socioeconômicas do povoado, que passaria a se chamar Vila Nova da Rainha (1790) e, finalmente, cidade de Campina Grande, em 1864. Com o tempo, eles foram se tornando a maior força de trabalho local. Ao lado de trabalhadores “livres”, como os meeiros, agregados e aqueles que recebiam por tarefa, foram os principais responsáveis pela produção da riqueza material e cultural do município. A maioria dos escravos de Campina Grande era proveniente da região onde hoje se situa o país de Angola, na África centro-ocidental.  Desembarcados no porto do Recife, eles eram redistribuídos para diferentes localidades de Pernambuco e da Paraíba.

    Entre os documentos que permitem o estudo da escravidão em Campina Grande, destaca-se uma série de inventários post mortem que abrangem os anos de 1785 a 1888. Dos 908 inventários pesquisados, 570 acusam a presença de escravos, o que dá 62,7% do total. Ao todo, havia na região, durante esse período, cerca de 3080 cativos, uma média de 5,4 por proprietário. A análise dos dados aí contidos nos permite traçar um rico e variado painel da gênese, do desenvolvimento e das transformações da instituição do cativeiro no município. Na maioria dos inventários pesquisados, encontramos cativos entre os bens deixados pelo falecido para os seus herdeiros. Isto se dá, pelo menos, até o ano de 1850, numa época em que a grande oferta do tráfico negreiro internacional permitia que uma boa parte dos homens livres proprietários pudesse aspirar à posse de escravos.

  • Os documentos confirmam que os indivíduos pertencentes às famílias tradicionais de Campina Grande, membros de sua elite econômica e política, possuíam, para os padrões locais, expressivos contingentes de escravos, a exemplo dos Nunes Viana, Alves Viana, Costa Agra, Pereira Luna, Vila Seca, Vaz Ribeiro, Pereira de Araújo, Lourenço Porto, Cavalcante de Albuquerque etc. Estes clãs, não por acaso, procuravam estimular o casamento entre seus membros, numa clara estratégia de manutenção do status quo.

    O caso mais notório de todos é o do capitão-mor Bento José Alves Viana, português de nascimento que migrou para o Brasil em fins do século XVIII e fixou residência em Campina Grande, transformando-se num dos homens mais poderosos da região. Em 1844, quando foi aberto o seu inventário, sua riqueza totalizava quase 78 contos de réis, uma fortuna para os padrões da época. Entre os muitos bens que deixou constavam cinqüenta e sete escravos, entre africanos de diversas etnias e crioulos (descendentes de africanos nascidos no Brasil). Os números revelam que Alves Viana foi o maior escravocrata da região na primeira metade do século XIX.

    Ao lado de nomes poderosos da época, havia também um considerável número de pequenos proprietários, com um ou dois escravos em seus espólios, que se tornavam objeto de disputa entre os herdeiros. Este foi o caso de Ana Tereza de Jesus, falecida em 1826, cujo inventário, feito no ano seguinte por seu marido, João da Rocha Junior, acusava a existência de uma única escrava, a africana Maria, de 40 anos, avaliada em 100 mil-réis. Maria foi motivo de disputa na justiça entre o viúvo meeiro e os nove filhos co-herdeiros.

    Os trabalhos que abordam a escravidão no Brasil ainda estão concentrados principalmente na Região Centro-Sul do país. Deste modo, não refletem as múltiplas experiências do cativeiro durante mais de três séculos. Analisando a história de Campina Grande, podemos recuperar e entender o papel dos escravos não só como mão-de-obra, mas também como sujeitos plenos da sociedade em que viveram.  Todas essas lutas e experiências relatadas contribuíram para o desmonte da escravidão em Campina Grande antes que a Lei de 13 de maio de 1888 sacramentasse esse processo. Os escravos e seus descendentes foram, e são, importantes personagens de sua própria história, apesar do silêncio político e historiográfico que se abateu sobre eles.

    Luciano Mendonça de Lima é Professor da Universidade Federal de Campina Grande e Doutorando em História na Universidade Federal de Pernambuco, onde desenvolve pesquisa sobre a história social da escravidão na Paraíba..